terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O fechamento de um cinema ou Privilégio versus Direitos [Update3]

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Update ao final do post!
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Quem mora na cidade de São Paulo deve estar sabendo do iminente fechamento de um dos melhores cinemas da cidade, o Belas Artes. Um cinema histórico, com cerca de 68 anos de vida, o Belas Artes irá fechar no fim deste mês graças a uma canalhice do dono do terreno, um tal de Flávio Maluf que, apesar de todas as características, não é filho do grande corrupto Paulo Maluf.

A questão, enfim, é que diversos frequentadores começaram um abaixo-assinado pedindo para que a prefeitura - do higienista Kassab - se sensibilize (e talvez deixe de lado a expulsão e os maus tratos aos moradores de rua do centro ou aos moradores do extremo sul da cidade) e faça alguma coisa para salvar o melhor cinema de arte da cidade.

Revolta à parte (e estou bem revoltado, pois adoro o cinema), a questão central aqui é discutir certos comentários que ouvi pelo Twitter e andei lendo em outros lugares de quem anda dizendo que é besteira tentar salvar "uma empresa". Ou pior, alguns ainda dizem que com tanta causa importante para se preocupar, porque logo perder tempo (sic) com um cinema, uma empresa?

Oras, falho em entender estes argumentos e digo porque.

Em primeiro lugar, não se trata meramente de uma "empresa", mas sim da tentativa de salvar um ambiente específico, um cinema, um local onde se promove cultura e entretenimento. Não importa quem seja o dono ou donos, ou o nome, e sim o ambiente, o concreto: o cinema.

Em segundo lugar, não penso que o ser humano só possa ou deva defender uma única causa. Não se trata de dizer, porém, que algo é mais ou menos importante, senão que se tratam de coisas diferentes.

Da mesma forma que me revolto e tento fazer alguma diferença quando alguém quer censurar a rede, ou quando vejo sem-tetos sendo espancados, ou ainda quando a prefeitura resolve jogar spray pimenta em desabrigados. Porque então não poderia me indignar igualmente quando um cinema que prezo fecha?

Como disse antes, não se trata de uma comparação, de dizer o que é mais ou menos importante, não é esta a questão, senão a de mostrar que não existem lutas justas que não sejam válidas lutar. Uma não excluí a outra.

Acredito que a frase de "Fernando", citado pelo R7 dá um resumo do sentimento:
- Isso é um crime cultural. Está mais do que na hora de o Belas Artes ser declarado um patrimônio da cidade. É injusto com o cinema, com a cidade, com o público. Os expectadores têm uma ligação emocional com o cinema
Não se trata também de afirmar ser elitista o entretenimento (ou a opção cultural), pois cultura deve ser paratodos. Trata-se de um cinema histórico, ligado à vida de muitas pessoas (aliás, que costuma praticar preços até acessíveis em alguns dias) e que deixará um vazio.

Sim, acho absurdo que alguém se revolte exclusivamente com o fechamento do cinema e ao mesmo tempo tenha nojo de pobres ou simplesmente não dê a mínima com o que acontece longe de seu quintal, mas também não entendo quem diz "tanta gente morrendo e nego se preocupando com um cinema". A realidade não é apenas uma. Não se espera que quem more/frequente em um lugar simplesmente abandone todas as suas opções porque existem outras causas no mundo. Humano é o que se sensibiliza e luta por todas, ou ao menos por todas que pode.

Sim, nos preocupamos com um cinema, com a cultura que ele traz, com o lazer, a diversão e com o conhecimento.Não se trata de protestar porque uma banda emo deixou de tocar, mas de protestar contra o fim arbitrário de uma importante opção cultural. Um cinema é muito mais que mero entretenimento passageiro. Aliás, assistam ao belíssimo Cinema Paradiso e entendam o que quero dizer.

É lamentável que o Jardins tenha um cinema destes (e outras opções) e a periferia não tenha nada, mas não acredito que se trate de "privilégios", no sentido negativo. Acredito, na verdade, que a periferia é que deva ter acesso aos mesmos "privilégios" que o centro, que a "elite".

Não se trata de achar ruim que um tenha, mas sim de achar ruim que muitos não tenham.

Arte, cultura, entretenimento - assim como educação, saúde e afins - não são "privilégios", mas direitos a que todos devem(riam) ter acesso, em igualdade de condições, de oportunidades. Infelizmente nossa realidade impõe que uns tenham estes direitos assegurados e outros não tenham, sejam deixados para trás, tenham seus direitos vulnerados.

Eliminar o direito de um sem que isto garanta o de outros me parece apenas uma "vingança" deslocada. Entendo o ódio que existe entre excluídos e "com acesso", é natural e compreensível, mas não tem sentido em ser alimentado. Melhor seria que fosse dado, obviamente, o acesso.

Lutar para que todos, sem exceção, tenham acesso.

A diferença entre "direito" e "privilégio" é claríssima. Direito é aquilo que é devido, ou seja, o acesso à cultura, ao entretenimento, à educação de qualidade, saúde e etc. Privilégio é aquilo que você tem ALÉM do devido, do de direito. É algo que pode ser tirado, que te diferencia negativamente dos demais. É o acumular para ter o melhor e não aquilo que você precisa em detrimento dos demais. Direito é apenas usufruir daquilo que lhe é garantido - ou deveria ser - pelo poder público.

Acreditar que ter acesso a um cinema, por exemplo, é privilégio, deturpa o próprio sentido de inclusão.

Um cinema enquanto opção cultural e de resistência não é um privilégio, é um direito. Direito este que, infelizmente, se encontra restrito, fazendo parecer um privilégio dado que poucos tem acesso.

Um exemplo macro seria o de dizer que o Sudeste, por concentrar a maioria dos cinemas tem privilégios sobre o Norte, onde não existem nem bem 60 cinemas. Oras, estamos falando de direitos. O fato do Norte ter poucos é lamentável e precisa mudar, mas o fato de São Paulo ter muitos é bom e precisa ampliar ainda mais para, obviamente, chegar até as periferias e garantir a eles, também, o acesso à cultura.

Não está aqui em discussão a tese do "você abriria mão de um direito/privilégio/conquista/raio que o parta para que a periferia tivesse?" simplesmente porque não se aplica. Belas Artes fechando não significa que a periferia ganhará um cinema. Simplesmente todos perderiam. E isto só para ficar no simples.

Para quem vem de baixo, qualquer direito conseguido torna-se "privilégio", pois de onde veio nada disso existe. Par quem sempre vive com seus direitos assegurados estes são apenas direitos, jamais privilégios.

Acesso à cultura, à entretenimento e etc não são privilégios, na verdade não deveriam ser encarados assim por ninguém, mas o são porque existe uma gigantesca exclusão social que torna aquilo que a constituição garante um bem inalcansável.

São pontos de vista semelhantes, mas com pontos de partido absolutamente discrepantes. Mas, no fim, há a luta contra a exclusão e por acesso, chame este acesso de privilégio - que deixaria de sê-lo quando todos o tivessem - ou simplesmente de garantia de direitos.

Acredito que, pela história e importância para uma parte da população, o cinema tenha que sofrer intervenção do governo na mesma medida que acredito que o mesmo governo tenha a obrigação de levar esta mesma cultura e as mesmas opções de entretenimento aos que hoje são excluídos.

Trata-se de resistência cultural. Um cinema de rua, afastado da lógica consumista do shopping, que promove não só entretenimento como cultura.

Cultura é pra todos. Se fecha um cinema prejudica a todo o coletivo, à toda a sociedade. Quem mora perto, quem trabalha perto, quem está só de passagem ou quem pode ir uma vez ou outra. Não importa onde, se do lado, em Guarulhos, no interior... Cultura é um bem universal.

Não tenho vergonha de dizer que assinei o abaixo-assinado em defesa do Belas Artes e de que me somo aos que se manifestam contra este absurdo e repudiam a atitude mesquinha do dono do imóvel que, no mínimo, irá abrir um templo evangélico no lugar, este câncer que se perpetua.

Enfim, devemos respeitar os protestos e o sentimento que existe em torno desta e de várias causas. Não podemos nos fechar a uma única causa, a uma única situação e acreditar que todas as demais são ilegítimas.

Repito, toda causa, quando se acredita, é legítima e válida de se lutar.

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O início do debate: http://memoriaindividual.wordpress.com/2011/01/09/privilegiados-somos-nozes/

Update 12/01: O Hugo albuquerque também entrou no debate: Por um Projeto de Urbanidade: As Enchentes e o Belas Artes
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Na Folha de hoje, saliento uma parte importante do texto:
Não deixe o cine Belas Artes fechar

NABIL BONDUKI



Milhares de paulistanos estão contra o fechamento desse cinema porque se sentem ligados ao local, que é uma referência cultural e urbana


A mobilização que a notícia do fechamento do Belas Artes gerou fala por si só: o cinema é um patrimônio da cidade de São Paulo.
Seu desaparecimento seria a perda de um pedaço de nossas vidas e criará uma lacuna que São Paulo, tão desprovida de memória e de lugares significativos, não pode deixar acontecer. Milhares de paulistanos estão contra esse crime porque se sentem ligados ao local, uma referência cultural e urbana.
Não se trata de preservar a arquitetura do edifício, mas seu uso, sua importância como ponto de encontro e espaço de debate cultural. A noção contemporânea de patrimônio é clara: a comunidade, além dos especialistas, tem um papel fundamental na identificação dos bens culturais a serem protegidos.
A noção de patrimônio mudou muito desde que o Estado Novo, por meio do decreto-lei nº 25/1937, criou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e instituiu o tombamento. Na época, prevaleceu uma visão restrita, voltada para os bens com valor arquitetônico e artístico, chamada de "patrimônio de pedra e cal".
Nessa concepção, os critérios utilizados para a seleção dos bens a serem protegidos eram os de caráter estético-estilísticos, excepcionalidade e autenticidade, valorizando a arquitetura tradicional luso-brasileira, geralmente edifícios isolados, produzida no período colonial.
O foco era a criação de uma identidade para fortalecer a construção do Estado nacional.
A partir dos anos 1970, essa noção de patrimônio se alargou para abranger sítios urbanos, manifestações de outros períodos e origens culturais e para valorizar os espaços representativos da vida social e dos hábitos cotidianos da população. Em certas situações, esses podem ser mais relevantes que monumentos de valor arquitetônico.
Valorizando o contexto urbano e edifícios utilizados pela população, essa visão reserva à comunidade um papel ativo na identificação do patrimônio. O tombamento do cine Belas Artes está respaldado no Plano Diretor Estratégico (PDE), do qual fui relator e redator do substitutivo na Câmara Municipal de São Paulo (lei nº 13.540/ 2002). O PDE incorporou integralmente essa visão contemporânea de patrimônio.
Uma das diretrizes do seu capítulo de política de patrimônio histórico e cultural é "a preservação da identidade dos bairros, valorizando as características de sua história, sociedade e cultura" (artigo 89, inciso III); uma das ações propostas é a de "incentivar a participação e a gestão da comunidade na pesquisa, identificação, preservação e promoção do patrimônio histórico, cultural, ambiental e arqueológico" (artigo 90, inciso VII).
De modo coerente com o PDE, parcela relevante da comunidade paulistana identificou um bem que faz parte da identidade de um bairro, que é característico da história e da cultura da cidade, e se mobiliza para garantir sua preservação.
Não é uma questão nova: em 2003, ocorreu uma grande comoção, que impediu o fechamento do Belas Artes e do antigo Cinearte (atual cine Livraria Cultura). Como parte daquela luta, propus uma lei que permite aos cinemas de rua o pagamento do IPTU e do ISS com ingressos, a serem utilizados pela prefeitura em programas de inclusão cultural.
Aprovada a lei e passado o sufoco, erramos ao não propor proteção legal permanente para os cinemas.
Agora, não temos tempo a perder; em poucos dias, o Belas Artes poderá ser uma ruína. A Associação Paulista de Cineastas já pediu o tombamento, pedido que eu reforço por meio deste artigo.
O Departamento de Patrimônio Histórico deve elaborar um parecer técnico e o Compresp (conselho municipal do patrimônio histórico) deve convocar reunião extraordinária, antes do final de janeiro, para aprovar o tombamento e não deixar que essa nova catástrofe ocorra em São Paulo.

NABIL BONDUKI é arquiteto, professor de planejamento urbano na FAU-USP e primeiro suplente de vereador da bancada do Partido dos Trabalhadores na cidade de São Paulo. Foi vereador de São Paulo pelo PT (2001-2004) e relator do Plano Diretor Estratégico na Câmara Municipal.
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