quarta-feira, 21 de julho de 2010

Artigo na Brasil de Fato - Uma visão do conflito no Quirguistão

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Os enfrentamentos recentes entre quirguizes e uzbeques dificilmente podem ser resumidos como puramente étnicos
À medida que o tempo passa e a situação no Quirguistão torna-se mais desesperadora para os refugiados e relativamente mais calma na cidade de Osh – principal foco dos enfrentamentos que vem ocorrendo recentemente –, o mito de que o confl ito seja meramente étnico cai por terra, ao menos parcialmente.

As mortes nos confrontos na cidade de Osh, no sul do Quirguistão, vêm depois da deposição do presidente Kurmanbek Bakiev, após uma violenta revolução que levou milhares de pessoas às ruas numa onda de violência avassaladora.

Revoluções e conflitos não são novidades no Quirguistão, que já havia enfrentado outro processo revolucionário em 2005, conhecido como Revolução das Tulipas, que acabou com a deposição do ditador Askar Akayev, no poder desde 1990, e a posse do agora destituído Bakiev.

Luta por poder
Osh, em particular, também foi palco de confl itos sangrentos, quando, em 1990, uzbeques e quirguizes entraram em conflito pelo status político da região; a maioria uzbeque exigia um status especial ou a “devolução” da área ao Uzbequistão.

Mas, agora, o conflito dificilmente pode ser resumido como puramente étnico. É o que diz Mirsulzhan Namazaliev, quirguiz e editor do blog Neweurasia.net. Ele salienta que os “casamentos interétnicos são muito comuns na região do Vale do Fergana”, onde fica Osh, e que “a proximidade entre Uzbequistão, Tadjiquistão e Quirguistão, que ali fazem fronteira, torna a migração algo extremamente simples e corriqueiro”.

Ekaterina Golubina, uzbeque e autora e tradutora do portal de mídia cidadã Global Voices Online, acredita que “ainda que haja, de fato, um embate maior entre membros das etnias uzbeque e quirguiz na região, é provável que o conflito se trate de uma luta por poder entre a elite deposta e a nascente”, ideia compartilhada pelos editores do blog Registan.net, uma das mais fiáveis fontes de informação em inglês sobre a região.

Guerra civil
“Emerge um consenso de que nada disso ocorreu porque dois grupos étnicos não gostam um do outro. Há indícios de que o conflito começou como uma tentativa de desestabilizar o novo governo” [sob o comando de Roza Otunbayeva], dizem eles, que afirmam ainda que a queda do antigo governo quebrou de forma drástica a cuidadosa cadeia de poder no país, em especial no sul – de onde vinha a família de Bakiev. Ou seja, o que vemos é uma competição por poder em que dois grupos antagônicos se degladiam e os uzbeques aproveitam para exigir maiores direitos e liberdades civis, acabando por sofrer as consequências.

Todos concordam que, de fato, existe um perigo de guerra civil no Quirguistão, mas descartam categoricamente um enfrentamento com o Uzbequistão, que tem se limitado a observar, reforçar suas fronteiras e coordenar os esforços para a chegada de, até o momento, mais de 100 mil refugiados do país vizinho.

Mesmo com a certeza da morte de civis uzbeques, o governo desse país dificilmente teria vontade de intervir, de uma forma ou de outra. É o que acredita Namazaliev. Segundo ele, qualquer tipo de intervenção uzbeque seria vista como uma afronta à soberania do Quirguistão, sendo logo rechaçada.

Lições
Os editores do Registan.net lembram ainda que os conflitos em Osh em 1990, dada a magnitude e os mais de 300 mortos, serviram como uma poderosa lição para desencorajar qualquer tipo de hostilidade entre os países. Além disso, o presidente do Uzbequistão, Karim Islamov, teria maiores preocupações, como se manter no poder e solidificar seu governo repressivo, do que efetivamente intervir em assuntos estrangeiros.

A relação entre os dois países, porém, sempre foi tensa, e, normalmente, os acontecimentos em um refletem no outro, como foi o caso da Revolução das Tulipas no Quirguistão, que acabou animando a oposição democrática e liberal uzbeque a sair às ruas e exigir democracia.

Como consequência, entre 300 e mil pessoas foram massacradas na cidade de Andijan (os números até hoje são desconhecidos e nenhuma investigação independente jamais foi feita) e, desde então, o governo tem evitado dar qualquer espaço para contestação ainda que, de acordo com Golubina, o povo também tenha aprendido sua dura lição.

Temores
É unânime a certeza de que a continuação do conflito no Quirguistão traria apenas mais sofrimento à população local e que todo esse processo se deu pela incapacidade do exército local em intervir a tempo e com firmeza.

Namazaliev afirma ainda que o único exército minimamente capaz é o do Uzbequistão, enquanto tanto a polícia quanto as Forças Armadas quirguizes são fracas, mal armadas e em pequeno número, o que talvez explique a ordem dada pela presidente interina de atirar para matar.

O temor é o de que, confrontados com opositores bem armados, as forças de segurança locais não consigam controlar a situação e que o envio massivo de efetivos para o sul tenha deixado o norte – e, consequentemente, a capital do país, Bishkek – desprotegida e livre para a ação dos apoiadores do regime deposto.

Potências
O fim do conflito ainda está por vir. Por hora, espera-se alguma atitude das potências e da ONU, e até mesmo uma ação mais firme da Rússia, para que o conflito chegue ao fim e seja dada uma solução para o retorno dos refugiados.

Golubina acredita que a comunidade internacional não deixará a região se tornar um palco de conflitos semelhante aos vizinhos Afeganistão e Paquistão. Mas, até agora, nenhum esforço internacional foi enviado para a região e apenas a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) considerou analisar os pedidos de ajuda vindos do país.

Entrementes, a ajuda humanitária continua a chegar, vinda do norte, e uma imensa rede de blogueiros e ativistas foi formada para que a verdade possa ser espalhada e para que sejam minimizados os esforços de contrainformação que tanto facilitam o trabalho dos que ativamente tentam tornar o conflito ainda maior.

Raphael Tsavkko Garcia é bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestrando em comunicação pela Faculdade Cásper Líbero

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Publicado originalmente na versão impressa do jornal Brasil de Fato nº 348 de 8-14 de julho e, na versão online dia 19/07/2010.
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