Os enfrentamentos recentes entre quirguizes e uzbeques dificilmente podem ser resumidos como puramente étnicos
À
medida que o tempo passa e a situação no Quirguistão torna-se mais
desesperadora para os refugiados e relativamente mais calma na cidade
de Osh – principal foco dos enfrentamentos que vem ocorrendo
recentemente –, o mito de que o confl ito seja meramente étnico
cai por terra, ao menos parcialmente.
As
mortes nos confrontos na cidade de Osh, no sul do Quirguistão, vêm
depois da deposição do presidente Kurmanbek Bakiev, após uma
violenta revolução que levou milhares de pessoas às ruas numa onda
de violência avassaladora.
Revoluções
e conflitos não são novidades no Quirguistão, que já havia
enfrentado outro processo revolucionário em 2005, conhecido como
Revolução das Tulipas, que acabou com a deposição do ditador
Askar Akayev, no poder desde 1990, e a posse do agora destituído
Bakiev.
Luta
por poder
Osh,
em particular, também foi palco de confl itos sangrentos, quando, em
1990, uzbeques e quirguizes entraram em conflito pelo status político
da região; a maioria uzbeque exigia um status especial ou a
“devolução” da área ao Uzbequistão.
Mas,
agora, o conflito dificilmente pode ser resumido como puramente
étnico. É o que diz Mirsulzhan Namazaliev, quirguiz e editor do
blog Neweurasia.net. Ele salienta que os “casamentos interétnicos
são muito comuns na região do Vale do Fergana”, onde fica Osh, e
que “a proximidade entre Uzbequistão, Tadjiquistão e Quirguistão,
que ali fazem fronteira, torna a migração algo extremamente simples
e corriqueiro”.
Ekaterina
Golubina, uzbeque e autora e tradutora do portal de mídia cidadã
Global Voices Online, acredita que “ainda que haja, de fato, um
embate maior entre membros das etnias uzbeque e quirguiz na região,
é provável que o conflito se trate de uma luta por poder entre a
elite deposta e a nascente”, ideia compartilhada pelos editores do
blog Registan.net, uma das mais fiáveis fontes de informação em
inglês sobre a região.
Guerra
civil
“Emerge
um consenso de que nada disso ocorreu porque dois grupos étnicos não
gostam um do outro. Há indícios de que o conflito começou como
uma tentativa de desestabilizar o novo governo” [sob o comando de
Roza Otunbayeva], dizem eles, que afirmam ainda que a queda do
antigo governo quebrou de forma drástica a cuidadosa cadeia de poder
no país, em especial no sul – de onde vinha a família de Bakiev.
Ou seja, o que vemos é uma competição por poder em que dois grupos
antagônicos se degladiam e os uzbeques aproveitam para exigir
maiores direitos e liberdades civis, acabando por sofrer as
consequências.
Todos
concordam que, de fato, existe um perigo de guerra civil no
Quirguistão, mas descartam categoricamente um enfrentamento com o
Uzbequistão, que tem se limitado a observar, reforçar suas
fronteiras e coordenar os esforços para a chegada de, até o
momento, mais de 100 mil refugiados do país vizinho.
Mesmo
com a certeza da morte de civis uzbeques, o governo desse país
dificilmente teria vontade de intervir, de uma forma ou de outra. É
o que acredita Namazaliev. Segundo ele, qualquer tipo de intervenção
uzbeque seria vista como uma afronta à soberania do Quirguistão,
sendo logo rechaçada.
Lições
Os
editores do Registan.net lembram ainda que os conflitos em Osh em
1990, dada a magnitude e os mais de 300 mortos, serviram como uma
poderosa lição para desencorajar qualquer tipo de hostilidade entre
os países. Além disso, o presidente do Uzbequistão, Karim Islamov,
teria maiores preocupações, como se manter no poder e solidificar
seu governo repressivo, do que efetivamente intervir em assuntos
estrangeiros.
A
relação entre os dois países, porém, sempre foi tensa, e,
normalmente, os acontecimentos em um refletem no outro, como foi o
caso da Revolução das Tulipas no Quirguistão, que acabou animando
a oposição democrática e liberal uzbeque a sair às ruas e exigir
democracia.
Como
consequência, entre 300 e mil pessoas foram massacradas na cidade de
Andijan (os números até hoje são desconhecidos e nenhuma
investigação independente jamais foi feita) e, desde então, o
governo tem evitado dar qualquer espaço para contestação ainda
que, de acordo com Golubina, o povo também tenha aprendido sua dura
lição.
Temores
É
unânime a certeza de que a continuação do conflito no Quirguistão
traria apenas mais sofrimento à população local e que todo esse
processo se deu pela incapacidade do exército local em intervir a
tempo e com firmeza.
Namazaliev
afirma ainda que o único exército minimamente capaz é o do
Uzbequistão, enquanto tanto a polícia quanto as Forças Armadas
quirguizes são fracas, mal armadas e em pequeno número, o que
talvez explique a ordem dada pela presidente interina de atirar para
matar.
O
temor é o de que, confrontados com opositores bem armados, as forças
de segurança locais não consigam controlar a situação e que o
envio massivo de efetivos para o sul tenha deixado o norte – e,
consequentemente, a capital do país, Bishkek – desprotegida e
livre para a ação dos apoiadores do regime deposto.
Potências
O
fim do conflito ainda está por vir. Por hora, espera-se alguma
atitude das potências e da ONU, e até mesmo uma ação mais firme
da Rússia, para que o conflito chegue ao fim e seja dada uma
solução para o retorno dos refugiados.
Golubina
acredita que a comunidade internacional não deixará a região se
tornar um palco de conflitos semelhante aos vizinhos Afeganistão e
Paquistão. Mas, até agora, nenhum esforço internacional foi
enviado para a região e apenas a Organização para a Segurança e
Cooperação na Europa (OSCE) considerou analisar os pedidos de ajuda
vindos do país.
Entrementes,
a ajuda humanitária continua a chegar, vinda do norte, e uma imensa
rede de blogueiros e ativistas foi formada para que a verdade possa
ser espalhada e para que sejam minimizados os esforços de
contrainformação que tanto facilitam o trabalho dos que ativamente
tentam tornar o conflito ainda maior.
Raphael
Tsavkko Garcia é bacharel em Relações Internacionais pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestrando
em comunicação pela Faculdade Cásper Líbero
Publicado originalmente na versão impressa do jornal Brasil de Fato nº 348 de 8-14 de julho e, na versão online dia 19/07/2010.