Visionário, gênio, herói, semideus e mesmo um deus tecno-humano foram
apenas alguns adjetivos usados pela mídia, por blogs e por indivíduos
para descrever Steve Jobs, na quarta-feira (5/10), vítima de câncer, aos
56 anos de idade. De forma absolutamente irrestrita sua imagem foi
vendida como a de um personagem irreal, saído da ficção direto para
salvar a humanidade da inércia e da apatia. Seus iPods, iPhones e outros
“i’s” se tornaram paradigmas supremos e símbolo da modernidade em que a
tecnologia determina nossas vidas.
Mais do que um obituário, Steve Jobs obteve um case de
marketing completo onde seus produtos foram vendidos sob o falso tom de
jornalismo comprometido. Sua morte pareceu até mesmo um golpe de
marketing. Apenas poucos dias após o anúncio de mais um novo produto,
sonho de consumo em um mundo onde a posse de gadgets
ultramodernos se tornou razão da vida de muitos, morre Jobs, sua marca
foi exaltada e o e a compra do mais novo iPhone transformada quase em
homenagem à memória do semideus.
Como de costume, a morte nos torna a todos perfeitos. Apaga nossas
falhas, nossas contradições. Não há nenhum morto que não seja lembrado
com alguma dose de... carinho, talvez? Mesmo os piores ditadores
encontram conforto na memória de selecionados seguidores. Por que seria
diferente com Jobs? Aos que se surpreendem com a comparação com
ditadores, não se assustem. Jobs era líder de um império empresarial,
capitalista por natureza. Não aceitava limites para sua criatividade ou
para seus lucros. Contrário à lógica colaborativa e democrática que
permeia a rede, preferia ter sob seu guarda-chuva os melhores, prontos a
trabalhar por gordos salários, e mantendo preso sob contrato
conhecimentos que poderiam ajudar no desenvolvimento de diversas outras
ferramentas e produtos tecnológicos.
Pensamento único da mídia
Sua empresa, a Apple, estava envolvida em escândalos, como casos de
trabalho escravo e mesmo suicídios em fábricas que produziam seus
produtos na China, como a Foxconn, que logo ampliará suas garras até as
terras brasileiras. Michael Moore já provou em seus documentários que os
patrões normalmente sabem das condições desumanas a que são submetidos
seus empregados, mesmo que em empresas terceirizadas. No Brasil, tivemos
recentemente a cobertura do caso da Zara, cuja cadeia de produção
incluía baixos salários e imigrantes em situação análoga à da
escravidão. Neste caso, palmas para a mídia que teve a dignidade de
ajudar na denúncia e na pressão.
No caso da Apple, toda e qualquer denúncia foi, agora, enterrada pelos
louvores ao gênio precocemente falecido. Ditador em suas maneiras, frio
nas suas decisões e interessado apenas na promoção pessoal e na de seus
produtos, que só faltam ir ao mercado e fazer as compras pelo seu feliz
dono. Apenas na internet, no ambiente em que a mídia ainda enfrenta
dificuldades para impor sua ditadura do pensamento único, algumas vozes
destoaram do coro ao semideus. Mas tímidas, localizadas e mesmo
comportadas.
Estas foram ignoradas ou reproduzidas pela mídia com tom de descrença,
quase de ofensa pessoal contra um herói que talvez tenha descoberto a
penicilina ou a cura para o câncer, mas que foi vencido em uma batalha
heroica.
A ditadura de pensamento único da mídia se perpetua e mantém vivo o
alerta pela necessidade de uma real democratização dos meios de
comunicação. E, acima de tudo, mostrou que, mais uma vez, a internet
permanece como um dos únicos polos de resistência que, ironicamente, foi
a casa do deus tecno-humano que faleceu.
Publicado originalmente no Observatório da Imprensa
Blog de comentários sobre política, relações internacionais, direitos humanos, nacionalismo basco e divagações em geral... Nome descaradamente baseado no The Angry Arab
quinta-feira, 13 de outubro de 2011
Steve Jobs: A morte do deus tecno-humano
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Steve Jobs: A morte do deus tecno-humano
2011-10-13T10:30:00-03:00
Raphael Tsavkko Garcia
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