quinta-feira, 19 de março de 2009

Força simbólica do triunfo popular em El Salvador

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Para completar meus raciocínios sobre El salvador nos últimos dias!=)
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Ricardo Zúniga García *

Adital -
Tradução: ADITAL


O desenlace do processo eleitoral salvadorenho visto a partir da história da América Central tem um profundo simbolismo. Vejamos:

1. É a primeira vez que El Salvador triunfa um governo com signo popular no menor país (21.000 km quadrados) e mais densamente povoado (7.000.000 habitantes) em terra firme americana.

2. As lutas salvadorenhas têm sido marcadas por reações extremamente violentas dos grupos hegemônicos. Em 1932, em uma insurreição camponesa demandando terra e trabalho, a oligarquia latifundiária salvadorenha, liderada pelo governo de turno, responde com uma repressão cruel e totalmente desproporcionada, assassinando a mais de trinta mil pessoas.
Para que se faça uma ideia do impacto desse massacre em termos humanos, devemos ver que, em 1932, El Salvador tinha aproximadamente um milhão de habitantes. Ou seja, que em um país de 100 milhões de habitantes como México, por exemplo, representaria a terrível soma de 3.200.000 pessoas assassinadas. Além do impacto numérico, a crueldade e o ódio classista sumário do massacre foram impressionantes. Nesse massacre foi assassinado o líder do movimento -Farabundo Martí-, que dá seu nome ao frente guerrilheiro que dirigiu a luta armada na década dos 80; representou a esquerda salvadorenha no processo de paz assinado em 1992; a partir daí, converteu-se em movimento e partido político; apresentou-se como alternativa popular em sucessivas eleições. Obtém uma bancada de deputados que vem crescendo desde 92 e agora chega a triunfar nas eleições presidenciais.

Quando foi assassinada praticamente toda a comunidade de jesuítas da universidade Centroamericana José Simeón Cañas (UCA), incluindo a Dona Elba Ramos e sua filha Celina, de 15 anos (novembro de 1989)(1), o Partido Arena já governava o país. É impossível que as autoridades supremas do país não tivessem tomado ciência de um ato de tão grande transcendência política, como o assassinato de pessoas com relevância e prestígio internacional, em uma área da cidade considerada estratégica e na qual somente se podia circular à noite com autorização especial do exército.
As investigações sobre o assassinato de Monsenhor Romero, por outro lado, apontaram o Major Roberto D’Aubuisson, fundador da Arena, como autor intelectual. Porém, mesmo com os resultados das investigações, foram eleitos em El Salvador quatro sucessivos presidentes, candidatos da Arena: Cristiani, Calderón Sol, Francisco Flores e Antonio Saca. Não deixa de ser paradoxal e de causar impacto que, mesmo exercendo a chantagem e agitando o medo, o Partido Arena, herdeiro de D’Abuisson, a quem jamais deslegitimaram, nem expulsaram, conseguisse eleger presidentes marcados pelo assassinato de Romero e por outros crimes horrendos (Sumpul, comunidade da UCA...), mundialmente conhecidos e condenados por governos, por instituições e personalidades.
Cortar esse ciclo de vergonha e tirar Arena do governo é efetivamente superar o doloroso paradoxo e expressa que o povo salvadorenho é hoje mais lúcido e claro do que nas eleições anteriores. Com a nova eleição, a maioria do povo está dizendo que já podemos resistir à chantagem de que eleger o FMLN (Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional) é confrontar-se com os Estados Unidos, é colocar em perigo o envio dos dólares que os laboriosos migrantes salvadorenhos despacham para seus familiares a partir do Norte.

4. El Salvador é atualmente um dos países com maior índice de violência no continente, com 117 homicídios em cada 100.000; é, juntamente com a Guatemala, o país com maior inequidade, na desigual América Central. Podemos, portanto, ler o resultado da eleição do passado 15 de março de 2009 como expressão de uma vontade política de ir superando essa desigualdade e suas consequências. O presidente eleito, Mauricio Funes, expressou que seu governo deseja assumir como guia a opção pelos pobres, proclamada firme e incansavelmente por monsenhor Romero. Como sabemos, Mons. Romero foi muito concreto ao falar de uma opção pela causa dos pobres. E sublinhou que um povo para ser respeitado e levado em consideração deve ser organizado.

5. É também um dos países com maior número de migrantes em relação à sua população; existem cerca de 2.500.000 salvadorenhos no exterior. Possivelmente, por isso Romero tenha sido capaz de suscitar durante a década dos 80 um vigoroso movimento de solidariedade com o povo salvadorenho, que ainda se mantém vivo.
Que esse histórico 15 de março seja um estímulo para continuar avançando na luta pelos direitos humanos dos migrantes ameaçados por leis discriminatórias nos serviços de educação e saúde nos Estados Unidos, pela ‘Diretiva do Retorno’ na Europa e por uma xenofobia crescente em muitos países desenvolvidos. Seja também uma motivação para a revitalização de uma dinâmica solidária entre todos os povos latinoamericanos que estão avançando na conquista de uma melhor qualidade de vida para seus povos, por mais respeito à natureza ‘única casa comum’ e fonte de vida.
Que o espírito de Monsenhor Romero, que convocou à solidariedade mundial com os povos em luta na América Central nos anos 80 nos interpele, os latinoamericanos, a sermos mais solidários na dimensão Sul-Sul e que desafie os países do mundo economicamente desenvolvidos a realizar novas formas de solidariedade, respeitando a autonomia de povos empobrecidos e propiciando relações de intercâmbio justo.

6. El Salvador já tinha uma importante e vigorosa organização popular que já funcionava desde os anos 20 e 30 do passado século XX. Como em muitas partes da América latina, as organizações revolucionárias salvadorenhas têm sofrido divisões, sectarismo e atomização. A morte do poeta Roque Dalton (2) e da Comandante Ana María (3) são um exemplo disso. O triste papel de Joaquín Villalobos (4) também. Os resultados alcançados em 2009 manifestam um avanço na unidade e ao mesmo tempo são um convite para alcançar uma maior unidade político-organizativa em torno aos interesses populares.

7. El Salvador é a pátria de Monsenhor Óscar Arnulfo Romero, de muitos sacerdotes, pastores religiosos/as que anunciaram uma ‘boa-nova’ concreta para seu povo. É a pátria de milhares de mártires dirigentes sociais, comunitários, camponeses/as e populações pobres, caídos desde o massacre de 1932 até o massacre de Sumpul e o assassinato coletivo da comunidade de jesuítas da UCA. Por isso é um desafio para todos/as os/as cristãos que cremos no poder multiplicador da semente que cai na terra, apodrece e frutifica, a renovar nossa fé e esperança e buscar os caminhos, os meios e as formas para a construção de uma sociedade menos injusta, menos violenta, começando por nosso próprio entorno, no rumo dos valores do Reino anunciado por Jesus e recordado por Romero. É um desafio a todas as pessoas com sensibilidade social e humana a trabalhar pela plena conquista dos direitos humanos sociais e individuais, pela unidade dos povos latinoamericanos.

Notas:

(1) Massacre da UCA: Na madrugada do dia 16 de novembro de 1989, em plena ofensiva do então insurgente FMLN, vários soldados invadiram no campus da Universidade José Simeón Cañas (UCA) de El Salvador e mataram a sangue frio seis sacerdotes católicos jesuítas e as duas trabalhadoras da residência religiosa.
(2) Roque Dalton García (San Salvador, 14 de maio de 1935 - 10 de maio de 1975), foi um poeta e político revolucionário de El Salvador. Descrevia com crua realidade sobre a conformação social e econômica do país.
(3) Mélida Anaya Montes, guerrilheira salvadorenha conhecida como Comandante Ana María, foi morta no dia 6 de abril de 1983, aos 53 anos, na Nicarágua.
(4) Joaquín Villalobos: Fundador e máximo dirigente do Exército Revolucionário do Povo (ERP), uma das cinco organizações que conformavam em 1980 o FMLN. Continuou como membro do FMLN até 1994, em 1995 o abandonou para formar um novo partido de centro, Partido Democrata, que desapareceu em 1999. Atualmente, é um crítico aberto da esquerda salvadorenha e de todos os movimentos de esquerda de outros países latinoamericanos.


* Colaborador de Adital. Educador nicaragüense. Analista político.
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