segunda-feira, 16 de março de 2009

Recordar é viver....

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=================================CARTA O BERRO.

Para não esquecer que a democracia não foi de graça...

Crônica de uma morte anunciada: o assassinato de Bacuri

"Prepare o seu coração pras as coisas que eu vou contar..."(Disparada - Geraldo Vandré e Théo de Barros)

Todos os militantes de esquerda que tiveram a morte como desfecho de sua luta contra a ditadura militar têm histórias tristes e trágicas, mas a de Eduardo Collen Leite - Bacuri - talvez seja a mais violenta de todas.Bacuri nasceu em Campo Belo, Minas Gerais, no dia 28 de agosto de 1945. Ainda criança mudou-se para São Paulo onde iniciou os estudos. Ingressou na militância política integrando-se à Polop (Política Operária) e,em 1967, incorporou-se ao Exército servindo na 7ª Companhia de guarda e,posteriormente, no Hospital do Exército.Em 1968 transferiu-se para a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), porém, em abril de 1969, retirou-se para fundar a Rede Democrática (REDE). Em seguida, mudou-se para a ALN (Ação Libertadora Nacional).Como todo militante de organizações clandestinas, recebeu um codinome pelo qual seria reconhecido pelos companheiros para que, dessa forma, ninguém conhecesse sua verdadeira identidade, criando, assim, um dispositivo de segurança. Entretanto, com Eduardo, o apelido pegou e apagou todos seus nomes de guerra. Até sua morte seria conhecido apenas como Bacuri.Todos os que conheceram Bacuri têm a mesma opinião sobre ele: "era um tipo simples, afável e bem-humorado". Bacuri era um militante total, como quase todos os integrantes dos grupos armados, para os quais estava descartada definitivamente qualquer outra opção de vida, mas, nele, havia uma coragem a toda prova, pois excluía hesitações.

A ousadia que se transformou em ódio

Bacuri era um militante determinado e corajoso. E foi personagem de uma série de episódios que o transformaram num dos homens mais odiados e perseguidos pela ditadura.Ao lado de Denise Crispim (sua esposa) e Devanir José de Carvalho foi capaz de furar uma barreira policial quando voltavam de um treinamento com o carro repleto de armas. Após uma perseguição cinematográfica, conseguiram escapar da polícia e, assim, salvar os armamentos da organização. Para salvar a vida de Chizuo Osava (Mário Japa - preso após um acidente automobilístico), a VPR e o campo de treinamento no Vale do Ribeira que tinha nada menos que o capitão Carlos Lamarca no comando, ajudou Ladislau Dowbor,Devanir José de Carvalho, Listz Vieira e Osvaldo Soares a seqüestrarem o cônsul japonês. Em troca do diplomata conseguiram a liberdade de Mário Japa, Damáris Lucena e seus três filhos, Madre Maurina Borges, Diógenes José de Carvalho de Oliveira e Otávio Ângelo - todos banidos para o México, salvando, assim, muitas vidas por algum tempo.

Entretanto, nenhum ato cometido por Bacuri poderia ter despertado tanto ódio entre os militares quanto a história que vem a seguir: no aparelho em que moravam Bacuri e Denise ficou hospedada por um tempo a militante Ana Bursztyn. Ana, ao cobrir um ponto acabou presa e, no 8º dia após torturas incessantes, abriu o endereço do aparelho. O resultado disso foi a prisão de Denise, grávida de pouco tempo. À distância,Bacuri, Carlos Eugênio Paz e Ana Maria Nacinovic assistiram impunes à prisão da companheira. Temeroso pela vida da mulher e do filho, Bacuri telefonou para o comandante do II Exército deixando o seguinte recado: "Aqui é o Bacuri, guerrilheiro da ALN. O DOI-CODI acabou de prender minha mulher e vão torturá-la para me entregar. Não há necessidade disso, assistimos a sua prisão, não tem mais informações a dar. Seu comandante responde pela vida dela e do bebê e, se algo acontecer, não descansaremos enquanto não matá-lo".

De início ninguém levou a ameaça a sério, até que Carlos Eugênio telefonou novamente e propôs a troca da vida de Denise e seu bebê pela do general-comandante do II Exército, pois deixou claro que conhecia a rotina do general e não pouparia a vida do mesmo. Contrariados, os militares aceitaram o acordo, mas também juraram acabar com a vida de Bacuri.

O calvário de Bacuri

Bacuri caiu nas mãos dos militares no dia 21 de agosto de 1970, preso quando chegava em sua casa, no Rio de Janeiro, pelo temido delegado Sérgio Paranhos Fleury.Foi torturado durante 109 dias em diversos centros de tortura. O sofrimento de Bacuri foi resultado da sanha dos torturadores diante das ameaças feitas quando da prisão de Denise. Bacuri foi submetido a um intenso processo de trucidamento na tortura. Uma das testemunhas disso foi Ana Bursztyn que relatou:

"Bacuri era levado e retirado.Ficava sempre sozinho numa cela ao fundo (...). [Os presos] faziam sempre protestos desesperados cada vez que ele saía, arrastando-se".

No dia 24 de outubro de 1970, o tenente da PM Chiari informa a Bacuri, recolhido na solitária do fundão do DOPS/SP, que o jornal daquele dia noticiava sua fuga ocorrida no dia anterior. Cerca de 50 presos políticos testemunharam que Bacuri jamais saíra de sua cela a não ser quando era carregado para as sessões diárias de tortura, pois já não tinha mais condições de se locomover sozinho.

No dia 27 de outubro Bacuri foi retirado de sua cela e nunca mais foi visto com vida.

Posteriormente, soube-se que foi levado para o sítio particular do delegado Fleury, um temido centro clandestino de torturas. No dia 8 de dezembro,42 dias após seu seqüestro e 109 de sua prisão, os jornais publicaram uma nota oficial divulgando a morte de Bacuri após tiroteio nas imediações de São Sebastião, litoral norte de São Paulo. Na verdade, Bacuri foi prontamente assassinado após a divulgação do seqüestro do embaixador suíço, ocorrido no dia 07 de dezembro, pois, certamente, seu nome estaria na lista de presos políticos trocados pelo diplomata e seria impossível soltá-lo por duas razões: encontrava-se oficialmente foragido e estava completamente desfigurado e mutilado pela tortura.

A solução era acabar definitivamente com sua vida. O corpo de Bacuri foi entregue à família que pôde constatar o que o ódio é capaz de fazer: seu corpo tinha hematomas, escoriações, cortes profundos e queimaduras por toda parte. Além disso, tinha dentes arrancados, as orelhas decepadas e os olhos vazados. A farsa sobre o assassinato de Bacuri incluía um laudo de exame necroscópico que afirmava que não houve tortura e ainda confirmava a versão oficial de morte em tiroteio.

O horror da visão de um corpo mutilado pelo ódio calou Denise para sempre e a levou a sair do país com a filha Eduarda, fruto de seu amor por Bacuri. Embora não tenha conhecido a filha, Bacuri a amava imensamente. O último resquício de amor que pôde guardar nos 109 dias de seu calvário foi um sapatinho de lã da filha, encontrado no bolso de sua calça; prova de que o amor supera o ódio, mesmo em circunstâncias de dor e sofrimento.A morte de Bacuri, de forma tão macabra, é apenas o reflexo do que a tortura fez ao Brasil. Mutilou uma nação e manchou para sempre as páginas da nossa história.

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