quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Saara Ocidental, terra ocupada - Artigo no Brasil de Fato

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Artigo sobre a crise recente no Saara Ocidental que publiquei no site do jornal Brasil de Fato (e depois publicado também no Opera Mundi):

À medida em que o Marrocos retoma algum controle, a ONU novamente se retira de cena, deixando o povo saraúi à mercê dos marroquinos
14/01/2011
Raphael Tsavkko Garcia
Empobrecido e virtualmente desconhecido por boa parte do mundo, o Saara Ocidental enfrenta uma de suas maiores e piores crises, que poderia ter acabado em uma sangrenta guerra civil.
O Saara Ocidental foi, até 1974-1975, um território espanhol e, com a descolonização durante o regime franquista - na verdade mais um abandono da região -, o território, à revelia de seus habitantes, os saraúis, foi dividido entre áreas de influência marroquina e mauritana.
Os exércitos dos respectivos países invadiram a fronteira do Saara Ocidental e o ocupam militarmente sem respeitar determinação da ONU que havia recomendado um referendo entre a população local para que decidissem seu destino ou mesmo a recomendação da Corte Internacional de Justiça que considerou ilegítima a soberania do Marrocos e da Mauritânia sobre a região.
Insatisfeitos em se verem divididos e terem negado seu direito à autodeterminação, os saraúis se organizaram na Frente Polisário, um amálgama de partido político e exército de liebrtação nacional. e começaram a lutar por seus direitos, num conflito que persiste até hoje com o Marrocos, que domina a maior parte do território com mão de ferro e mantém uma política de apartheid social e forte controle sobre a população nativa.
A Frente Polisário (Frente Popular para a Libertação de Saguia el Hamra e Rio de Oro), que já combatia o governo espanhol e lutava pela independência desde o começo dos anos 70, passou então a combater dois países invasores em uma luta desigual.
Em 1976, em meio à luta contra a Mauritânia- que será finalmente derrotada e empurrada para sua antiga fronteira em 1979 - e o Marrocos, a Frente Polisário proclamou a República Árabe Saraúi Democrática que, hoje, controla apenas uma pequena parcela do território - cerca de 20% - fronteiriço à Mauritânia e Argélia.
Durante anos o Marrocos construiu um muro para separar os territórios sob seu controle dos territórios - desérticos em sua maioria - sob controle da Frente Polisário, em um modelo semelhante ao do muro de separação construído por Israel e apelidado de Muro do Apartheid, por isolar a população Palestina de seus territórios de direito.
Este muro contribuiu para o agravamento da situação dos direitos humanos da população saraúi que, do lado marroquino do muro, é vítima de abusos e discriminação pela população marroquina emigrada e pelas autoridades do país invasor, e do lado da Frente Polisário sofre com a fome, a falta de água e de condições básicas de saúde e habitação.
Milhares de saraúis ainda vivem em campos de refugiados na vizinha Argélia (ao menos 160 mil vivem no campo de Tinduf) e mesmo em campos mantidos por organizações internacionais no território administrado pelos rebeldes.
O Marrocos não se contentou em apenas ocupar militarmente o Saara Ocidental, mas também promoveu uma gigantesca onda de migração de marroquinos ao território esparsamente povoado, o que dificulta ainda mais qualquer tentativa das Nações Unidas de promover um referendo regional pela independência - algo que está em pauta desde os anos 70.
A chamada "Marcha Verde" promovida pelo então rei Hassan II em 1975, levou pelo menos 350 mil marroquinos à região para, assim, formar uma maioria populacional e garantir sua dominação.
Em meio à morte de Francisco Franco, a Espanha pouco pôde - ou mesmo quis - fazer para pressionar por uma solução pacífica da questão. Desde 1974 a Espanha anunciava a intenção de realizar um referendo pela independência da região, algo que nunca passou de uma intenção, pois no mesmo ano a então colônia foi invadida pelo Marrocos e, com a morte de Franco em 1975, a Espanha abandonou definitivamente a população local a sua sorte.
A ONU, por outro lado, embasada na resolução 1548 da Assembléia Geral, denunciava desde meados dos anos 60 a situação de dominação colonial na região, mas desde então pouco fez de efetivo.

O conflito na região também se insere na lógica da Guerra Fria, com os EUA discretamente apoiando os interesses marroquinos em oposição aos interesses da Argélia. Era do interesse dos EUA garantir aquele território ao seu aliado marroquino e frustrar os planos da Argélia e da União Africana, que havia em grande parte reconhecido o direito dos saraúis à terra, numa tentativa de afastar o perigo do Comunismo daquela área tão próxima da Europa.
Desde a trégua declarada em 1991 que a ONU vem tentando fazer os dois lados conversarem e buscarem uma solução para o conflito, que intercala períodos de maior e menor intensidade de enfrentamentos armados. Constante, porém, é a política de repressão, limpeza étnica e até mesmo genocídio por parte do Marrocos.
Marrocos e Frente Polisário estão em constante desacordo sobre os termos de um possível referendo a ser celebrado na região sob os auspícios da ONU, em especial sobre o censo populacional e sobre quem teria direito a votar. Os sarauis não aceitam que marroquinos emigrados, logo, invasores, tenham direito ao voto, enquanto o Marrocos não abre mão do voto deste contingente que, hoje, pode garantir à este país uma vitória contra os verdadeiros donos da terra.
O Marrocos ainda se opõe ao direito ao voto da população saraúi que vive no campo argelino de Tindouf, pois muitos vivem ha tanto tempo no exílio que seus filhos nasceram na Argélia e jamais colocaram os pés no território do Saara Ocidental. Situação esta que encontra amplos paralelos com a posição de Israel frente ao Direito de Retorno dos Palestinos. Válido notar, também, que a franca maioria dos saraúis vive, hoje, em campos de refugiados.
O Marrocos considera o Saara Ocidental como parte indivisível de seu território e apenas aceitaria um referendo patrocinado pela ONU se seus requisitos fossem obedecidos, ou seja, se a maioria da população da região fosse impedida de exercer seu direito ao voto. Todas as tentativas de diálogo por parte do rei marroquino, Mohammed IV, pregam um processo de "regionalização" do Saara Ocidental e de permitir uma maior autonomia local apenas dentro do Estado marroquino.
Mohamed Abdelaziz, líder da República Árabe Saraúi Democrática, obviamente, se recusa sequer a conversar enquanto o Saara Ocidental for considerado mera região do Marrocos, sem direito pleno à autodeterminação.
Desde 2009 os ânimos estão mais acirrados do que nunca. Em novembro de 2009 a ativista saraúi Aminatu Haidar iniciou uma greve de fome no aeroporto de Lançarote, nas Ilhas Canárias, para exigir do Marrocos o direito de voar de volta à sua terra. Haidar é considerada a principal embaixadora da causa saraúi e sua recusa em se identificar como marroquina a levou a ser impedida de chegar ao Saara Ocidental.
Sua greve durou mais de 30 dias e mobilizou artistas, personalidades e governos em seu apoio e a causa do Saara Ocidental conseguiu alcançar as principais manchetes internacionais, causando grande preocupação ao governo marroquino.
Haidar permanece em prisão domiciliar desde então, na capital do Saara Ocidental, El Aaiún, vigiada 24h por tropas marrroquinas.
Menos de um ano depois deste episódio, em outubro de 2010, os Saraúis resolveram novamente elevar o tom contra a ocupação marroquina e milhares de pessoas (cerca de 20 mil segundo algumas fontes) deixaram a cidade de El Aaiún para protestar contra a ocupação e montaram o acampamento de Agdaym Izik, ou Acampamento Dignidade.
A idéia do acampamento era o de constranger o governo marroquino e fazer o mundo conhecer a situação do povo saraúi submetido a mais de 30 anos de ocupação, pese as inúmeras tentativas da ONU para resolver o conflito. O objetivo dos que acamparam é o de denunciar a exploração econômica das riquezas do país (especialmente o fosfato) e exigir o reconhecimento da soberania do Saara Ocidental.
Já no começo de novembro de 2010 as forças marroquinas invadiram o acampamento com gases lacrimogêneo, bombas de efeito moral e armas pesadas para desalojar os manifestantes, deixando um saldo de pelo menos 5 mortos (fontes dizem que os mortos podem chegar a 15). Os demais milhares de manifestantes forma levados a força para a capital, para delegacias da cidade e prisões.
A violenta invasão do acampamento causou revolta na população saraúi que permaneceu na cidade e prédios públicos foram queimados enquanto o exército marroquino abatia a tiros os revoltosos.
O nível de tensão, no fim de 2010, foi o mais alto desde a trégua de 1991 e a revolta por parte da população ainda pode resultar em uma guerra civil que levaria toda a região ao caos.
Apenas com extrema violência o Marrovos vem conseguindo manter a situação sob um certo controle, baseado no mais puro medo de uma repressão ainda mais terrível e feroz.
O Marrocos não reconhece a existência de um povo saraúi, mas apenas de um único povo marroquino. Curioso notar que, mesmo assim, o exército do Marrocos não exita em matar indiscriminadamente aquele que seria seu próprio povo.
A insistência da Espanha em se recusar a condenar ou mesmo a reconhecer a gravidade da situação agrava o problema, visto que, da Europa, é o país com os maiores interesse e sua inação acaba por enfraquecer qualquer apelo que possa ser feito à ONU.
A Argélia, um dos poucos países a reconhecer a independência do Saara Ocidental, poderia ser levada ao conflito graças ao enorme campo de concentração dentro de suas fronteiras e da grande quantidade de refugiados em seu território. Seria a base operacional mais óbvia para as ações da Frente Polisário.
A Mauritânia provavelmente seria trazida ao conflito pela leva de refugiados que uma guerra civil pode causar e o Marrocos, sem sombra de dúvida, seria a principal vítima dos ataques dos rebeldes da Frente Polisário, assim como a própria população saraúi, empobrecida e abandonada.
A ONU demonstra mais uma vez sua inutilidade ao se limitar a pedir calma e diálogo sem, porém, tomar atitudes efetivas para a resolução do conflito e para amenizar minimamente o sofrimento da população saraúi. À medida em que o Marrocos retoma algum controle, a ONU novamente se retira de cena, deixando, como de costume, o povo saraúi à mercê dos marroquinos e de sua vingança por mais uma revolta.
Raphael Tsavkko Garcia é bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestrando em comunicação pela Faculdade Cásper Líbero.
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