À medida em que o Marrocos retoma algum 
controle, a ONU novamente se retira de cena, deixando o povo saraúi à 
mercê dos marroquinos
14/01/2011
Raphael Tsavkko 
Garcia
Empobrecido e virtualmente 
desconhecido por boa parte do mundo, o Saara Ocidental enfrenta uma de 
suas maiores e piores crises, que poderia ter acabado em uma sangrenta 
guerra civil.
O Saara Ocidental foi, até 
1974-1975, um território espanhol  e, com a descolonização durante o 
regime franquista - na verdade mais um abandono da região -, o 
território, à revelia de seus habitantes, os saraúis, foi dividido entre
 áreas de influência marroquina e mauritana.
Os 
exércitos dos respectivos países invadiram a fronteira do Saara 
Ocidental e o ocupam militarmente sem respeitar determinação da ONU que 
havia recomendado um referendo entre a população local para que 
decidissem seu destino ou mesmo a recomendação da Corte Internacional de
 Justiça que considerou ilegítima a soberania do Marrocos e da 
Mauritânia sobre a região.
Insatisfeitos em se 
verem divididos e terem negado seu direito à autodeterminação, os 
saraúis se organizaram na Frente Polisário, um amálgama de partido 
político e exército de liebrtação nacional. e começaram a lutar por seus
 direitos, num conflito que persiste até hoje com o Marrocos, que domina
 a maior parte do território com mão de ferro e mantém uma política de 
apartheid social e forte controle sobre a população nativa.
A Frente Polisário (Frente Popular para a Libertação de 
Saguia el Hamra e Rio de Oro), que já combatia o governo espanhol e 
lutava pela independência desde o começo dos anos 70, passou então a 
combater dois países invasores em uma luta desigual.
Em 1976, em meio à luta contra a Mauritânia- que será 
finalmente derrotada e empurrada para sua antiga fronteira em 1979 -  e o
 Marrocos, a Frente Polisário proclamou a República Árabe Saraúi 
Democrática que, hoje, controla apenas uma pequena parcela do território
 - cerca de 20% - fronteiriço à Mauritânia e Argélia.
Durante anos o Marrocos construiu um muro para separar 
os territórios sob seu controle dos territórios - desérticos em sua 
maioria - sob controle da Frente Polisário, em um modelo semelhante ao 
do muro de separação construído por Israel e apelidado de Muro do 
Apartheid, por isolar a população Palestina de seus territórios de 
direito.
Este muro contribuiu para o agravamento 
da situação dos direitos humanos da população saraúi que, do lado 
marroquino do muro, é vítima de abusos e discriminação pela população 
marroquina emigrada e pelas autoridades do país invasor, e do lado da 
Frente Polisário sofre com a fome, a falta de água e de condições 
básicas de saúde e habitação.
Milhares de saraúis
 ainda vivem em campos de refugiados na vizinha Argélia (ao menos 160 
mil vivem no campo de Tinduf)  e mesmo em campos mantidos por 
organizações internacionais no território administrado pelos rebeldes.
O Marrocos não se contentou em apenas ocupar 
militarmente o Saara Ocidental, mas também promoveu uma gigantesca onda 
de migração de marroquinos ao território esparsamente povoado, o que 
dificulta ainda mais qualquer tentativa das Nações Unidas de promover um
 referendo regional pela independência - algo que está em pauta desde os
 anos 70.
A chamada "Marcha Verde" promovida pelo
 então rei Hassan II em 1975, levou pelo menos 350 mil marroquinos à 
região para, assim, formar uma maioria populacional e garantir sua 
dominação.
Em meio à morte de Francisco Franco, a
 Espanha pouco pôde - ou mesmo quis - fazer para pressionar por uma 
solução pacífica da questão. Desde 1974 a Espanha anunciava a intenção 
de realizar um referendo pela independência da região, algo que nunca 
passou de uma intenção, pois no mesmo ano a então colônia foi invadida 
pelo Marrocos e, com a morte de Franco em 1975, a Espanha abandonou 
definitivamente a população local a sua sorte.
A 
ONU, por outro lado, embasada na resolução 1548 da Assembléia Geral, 
denunciava desde meados dos anos 60 a situação de dominação colonial na 
região, mas desde então pouco fez de efetivo.
O conflito na região também se insere na lógica da Guerra Fria, com os EUA discretamente apoiando os interesses marroquinos em oposição aos interesses da Argélia. Era do interesse dos EUA garantir aquele território ao seu aliado marroquino e frustrar os planos da Argélia e da União Africana, que havia em grande parte reconhecido o direito dos saraúis à terra, numa tentativa de afastar o perigo do Comunismo daquela área tão próxima da Europa.
O conflito na região também se insere na lógica da Guerra Fria, com os EUA discretamente apoiando os interesses marroquinos em oposição aos interesses da Argélia. Era do interesse dos EUA garantir aquele território ao seu aliado marroquino e frustrar os planos da Argélia e da União Africana, que havia em grande parte reconhecido o direito dos saraúis à terra, numa tentativa de afastar o perigo do Comunismo daquela área tão próxima da Europa.
Desde a trégua 
declarada em 1991 que a ONU vem tentando fazer os dois lados conversarem
 e buscarem uma solução para o conflito, que intercala períodos de maior
 e menor intensidade de enfrentamentos armados. Constante, porém, é a 
política de repressão, limpeza étnica e até mesmo genocídio por parte do
 Marrocos.
Marrocos e Frente Polisário estão em 
constante desacordo sobre os termos de um possível referendo a ser 
celebrado na região sob os auspícios da ONU, em especial sobre o censo 
populacional e sobre quem teria direito a votar. Os sarauis não aceitam 
que marroquinos emigrados, logo, invasores, tenham direito ao voto, 
enquanto o Marrocos não abre mão do voto deste contingente que, hoje, 
pode garantir à este país uma vitória contra os verdadeiros donos da 
terra.
O Marrocos ainda se opõe ao direito ao 
voto da população saraúi que vive no campo argelino de Tindouf, pois 
muitos vivem ha tanto tempo no exílio que seus filhos nasceram na 
Argélia e jamais colocaram os pés no território do Saara Ocidental. 
Situação esta que encontra amplos paralelos com a posição de Israel 
frente ao Direito de Retorno dos Palestinos. Válido notar, também, que a
 franca maioria dos saraúis vive, hoje, em campos de refugiados.
O Marrocos considera o Saara Ocidental como parte 
indivisível de seu território e apenas aceitaria um referendo 
patrocinado pela ONU se seus requisitos fossem obedecidos, ou seja, se a
 maioria da população da região fosse impedida de exercer seu direito ao
 voto. Todas as tentativas de diálogo por parte do rei marroquino, 
Mohammed IV, pregam um processo de "regionalização" do Saara Ocidental e
 de permitir uma maior autonomia local apenas dentro do Estado 
marroquino.
Mohamed Abdelaziz, líder da República
 Árabe Saraúi Democrática, obviamente, se recusa sequer a conversar 
enquanto o Saara Ocidental for considerado mera região do Marrocos, sem 
direito pleno à autodeterminação.
Desde 2009 os 
ânimos estão mais acirrados do que nunca. Em novembro de 2009 a ativista
 saraúi Aminatu Haidar iniciou uma greve de fome no aeroporto de 
Lançarote, nas Ilhas Canárias, para exigir do Marrocos o direito de voar
 de volta à sua terra. Haidar é considerada a principal embaixadora da 
causa saraúi e sua recusa em se identificar  como marroquina  a levou a 
ser impedida de chegar ao Saara Ocidental.
Sua 
greve durou mais de 30 dias e mobilizou artistas, personalidades e 
governos em seu apoio e a causa do Saara Ocidental conseguiu alcançar as
 principais manchetes internacionais, causando grande preocupação ao 
governo marroquino.
Haidar permanece em prisão 
domiciliar desde então, na capital do Saara Ocidental, El Aaiún, vigiada
 24h por tropas marrroquinas.
Menos de um ano 
depois deste episódio, em outubro de 2010, os Saraúis resolveram 
novamente elevar o tom contra a ocupação marroquina e milhares de 
pessoas (cerca de 20 mil segundo algumas fontes) deixaram a cidade de El
 Aaiún para protestar contra a ocupação e montaram o acampamento de 
Agdaym Izik, ou Acampamento Dignidade.
A idéia do
 acampamento era o de constranger o governo marroquino e fazer o mundo 
conhecer a situação do povo saraúi submetido a mais de 30 anos de 
ocupação, pese as inúmeras tentativas da ONU para resolver o conflito. O
 objetivo dos que acamparam é o de denunciar a exploração econômica das 
riquezas do país (especialmente o fosfato) e exigir o reconhecimento da 
soberania do Saara Ocidental.
Já no começo de 
novembro de 2010 as forças marroquinas invadiram o acampamento com gases
 lacrimogêneo, bombas de efeito moral e armas pesadas para desalojar os 
manifestantes, deixando um saldo de pelo menos 5 mortos (fontes dizem 
que os mortos podem chegar a 15). Os demais milhares de manifestantes 
forma levados a força para a capital, para delegacias da cidade e 
prisões.
A violenta invasão do acampamento causou
 revolta na população saraúi que permaneceu na cidade e prédios públicos
 foram queimados enquanto o exército marroquino abatia a tiros os 
revoltosos.
O nível de tensão, no fim de 2010, 
foi o mais alto desde a trégua de 1991 e a revolta por parte da 
população ainda pode resultar em uma guerra civil que levaria toda a 
região ao caos.
Apenas com extrema violência o 
Marrovos vem conseguindo manter a situação sob um certo controle, 
baseado no mais puro medo de uma repressão ainda mais terrível e feroz.
O Marrocos não reconhece a existência de um povo 
saraúi, mas apenas de um único povo marroquino. Curioso notar que, mesmo
 assim, o exército do Marrocos não exita em matar indiscriminadamente 
aquele que seria seu próprio povo.
A insistência 
da Espanha em se recusar a condenar ou mesmo a reconhecer a gravidade da
 situação agrava o problema, visto que, da Europa, é o país com os 
maiores interesse e sua inação acaba por enfraquecer qualquer apelo que 
possa ser feito à ONU.
A Argélia, um dos poucos 
países a reconhecer a independência do Saara Ocidental, poderia ser 
levada ao conflito graças ao enorme campo de concentração dentro de suas
 fronteiras e da grande quantidade de refugiados em seu território. 
Seria a base operacional mais óbvia para as ações da Frente Polisário.
A Mauritânia provavelmente seria trazida ao conflito
 pela leva de refugiados que uma guerra civil pode causar e o Marrocos, 
sem sombra de dúvida, seria a principal vítima dos ataques dos rebeldes 
da Frente Polisário, assim como a própria população saraúi, empobrecida e
 abandonada.
A ONU demonstra mais uma vez sua 
inutilidade ao se limitar a pedir calma e diálogo sem, porém, tomar 
atitudes efetivas para a resolução do conflito e para amenizar 
minimamente o sofrimento da população saraúi. À medida em que o Marrocos
 retoma algum controle, a ONU novamente se retira de cena, deixando, 
como de costume, o povo saraúi à mercê dos marroquinos e de sua vingança
 por mais uma revolta.
Raphael 
Tsavkko Garcia é bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia 
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestrando em comunicação 
pela Faculdade Cásper Líbero.

 
