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segunda-feira, 7 de julho de 2014

Sobre Copa, otimismo, pessimismo, e uma verdadeira esperança dissidente

Guest post de Mariana Parra
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Os debates e discussões sobre a Copa, muitas vezes acalorados e polarizados, me lembraram uma aula que tive o prazer de ter com um professor da República Democrática do Congo, sobre integração africana. Ele começou a aula falando sobre os afro-otimistas e os afro-pessimistas.

Os primeiros, um grupo mais reduzido, normalmente pessoas de ONGs e missionários religiosos, exaltam as maravilhas do continente e das culturas africanas, as características de seus povos, o futuro brilhante que o continente tem pela frente. Os segundos, infelizmente mais abundantes do que gostaríamos, normalmente líderes políticos e acadêmicos europeus, profetizam que a África é um continente fadado ao fracasso, ao subdesenvolvimento e à pobreza, como se pode imaginar, usando discursos e argumentos racistas e etnocêntricos.

O meu professor, uma figura bastante reconhecida no seu país e em outros países africanos, se declarou um afro-realista, como uma pessoa que conhece bem os problemas e desafios desse continente tão castigado por séculos de colonialismo e exploração, e conhece bem também suas potencialidades, sua enorme riqueza cultural e social, sua natureza prodigiosa, que trouxe grandes desafios para o ser humano, desde o início, o início de todos nós (afinal, todos viemos da África). Ele destacou a herança maldita do colonialismo que infelizmente ainda persiste na maioria dos países africanos, e afirmou sua firme esperança num futuro melhor e mais justo para o povo africano, sua esperança baseada no enorme capital humano e cultural do continente, que precisa se recuperar de tantos anos de exploração e do cruel colonialismo.

Voltando ao Brasil, me considero bem próxima ao pensamento do professor democrático congolês. Muitos no Brasil parecem querer negar nossos problemas, parecem querer varrê-los para debaixo do tapete. Nos debates sobre a Copa, se ressentem da onda de críticas contra o evento (de qualquer que seja a origem, por certo há críticas bastante questionáveis). Reafirmam a #CopadasCopas, qualificam qualquer crítica como síndrome de vira-lata.

Querem calar as vozes que apontam para a corrupção, para as remoções, para a violência policial que já ceifou muitas vidas, sim, no contexto do evento (poderiam ser ceifadas em outros contextos, mas sabemos do que estamos falando, e as comunidades atingidas demonstraram muito bem isso com o lema: A festa nos estádios não vale as lágrimas nas favelas), além da incrível repressão policial às manifestações, com a prisão de ativistas em procedimentos totalmente ilegais (com claras irregularidades por parte da polícia e também do judiciário). Os otimistas que não toleram a dissidência querem afirmar e propagandear o Brasil que dá certo, o Brasil bonito, a festa, em troca de esconder, debaixo do tapete, a barbárie diária de massivas violações aos direitos, principalmente dos mais desfavorecidos, inclusive o básico direito à vida.

Já vi gente dizendo inclusive que críticas à organização do evento são racistas, com as comparações com países desenvolvidos. Ora, é alguma mentira que o Brasil tem mais corrupção que outros países que conseguiram avançar mais em seus mecanismos democráticos? Não coloco nenhum país em pedestal, muito menos na atual altura do campeonato, em que a crise nos países desenvolvidos demonstra a insustentabilidade total do sistema capitalista global, demonstra os limites dos avanços democráticos alcançados nesses países. Também acho que temos que valorizar nossa cultura, nossa sociedade, nossas grandes vantagens. Temos uma incrível sociodiversidade, uma cultura riquíssima, vinda do encontro de tantas culturas.

Nasci em São Paulo e me sinto privilegiada por ter crescido no cosmopolitismo da cidade. É por isso mesmo que acredito na importância da luta contra todas as barbáries e retrocessos que estamos vivendo. Síndrome de vira-lata mesmo é querer negar os próprios problemas, viver de fantasia e querer apagar a dor dos demais, é assumir um otimismo festivo que não quer saber dos problemas, aquela festividade dos que não querem que essa gente que conta os mortos atrapalhe a alegria (e nada contra quem está curtindo a Copa, muito pelo contrário, há coisas inclusive bem interessantes na Copa, o problema é os que querem curtir e não querem ouvir nenhum outro ruído, os que ainda querem calar os dissidentes, e sim, infelizmente há muitos).

Analisando outro caso de racismo em âmbito internacional: as perspectivas racistas, xenófobas e etnocêntricas em relação ao mundo árabe e muçulmano são muito disseminadas. Algumas inclusive do meu ponto de vista muito toleradas em âmbito acadêmico (assim como os afro-pessimistas). Os propagadores do "choque de civilizações" pintam os árabes como naturalmente beligerantes, lhes atribuem características essenciais, inferiores à cultura cristã ocidental. Quem conhece um pouco de história e das culturas árabes e muçulmanas sabe como isso é uma mentira completa, fruto de mentes ignorantes e fanáticas.

Quem conhece história sabe que enquanto a Europa estava mergulhada nas trevas da Idade Média, as ciências e as artes floresciam em países do Oriente. Quem conhece um pouco sobre política internacional sabe que a radicalização de grupos islâmicos se deve, em grande medida, às políticas desastrosas dos Estados Unidos durante a Guerra Fria, e marcadamente depois do 11 de setembro. Quem conhece todo esse contexto, porém, não irá fingir que o Oriente Médio é hoje um paraíso. Quem conhece as causas e raízes dos conflitos no Oriente Médio não vai querer tapar ou negar que, muito tristemente, a região está hoje à beira de um conflito generalizado, com parte da sua população sendo submetida à um sofrimento extremo.

Acredito que a verdadeira luta por um mundo melhor prescinde de uma verdadeira disposição para encarar a realidade. Como lutar contra a opressão sem reconhecê-la? O imperialismo europeu e estadunidense ainda dominam o mundo, levaram à consequências desastrosas, com as quais lidamos até hoje. Promoveu a escravidão, genocídios, massacres, sociocídios (onde o tecido social e as bases morais e culturais de uma sociedade são destruídas, muitas vezes com gerações e gerações submetidas à exploração e à conflitos). O sistema internacional ainda é baseado em grande medida nessas antigas ordens, embora tenha mecanismos e uma aparência de consenso e democracia, e embora tenha, de fato, mecanismos democráticos (que infelizmente funcionam cada dia menos), e algum senso de humanitarismo.

O mesmo vale para o Brasil (e hoje as fronteiras entre o local e o global são cada vez mais tênues. Nossa situação é muito parecida à de muitos outros países, com repressão, militarismo, violência, desigualdades extremas, etc.). Os que querem esconder o sol com a peneira apenas contribuirão para a manutenção do status quo, esse status quo que tentam apagar (apagando, também, suas vítimas diárias). Talvez seja esse mesmo o objetivo destes. Prefiro seguir, como colocado nessa entrevista com Chomsky, uma esperança dissidente, que acredita na força dos que lutam diariamente, dos que atrapalham a festa, para um dia também poderem sorrir plenamente.

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O grande Plínio de Arruda Sampaio faleceu um dia após esta postagem ser feita e suas considerações finais durante o último debate para a presidência em 2010 caem como uma luva e nos faz pensar.
Descanse em paz, Plínio. Você será sempre lembrado por nós. Plínio presente!
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segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Da Primavera Bérbere ao Outono Islâmico

O que começou como um movimento de libertação nacional da minoria Bérbere no norte do Mali e a posterior formação do Estado de Azawad acabou como uma queda de braços entre a França, com aval da ONU e do governo malinês, e grupos islâmicos radicais, como o Ansar Dine e o Movimento pela Unidade e pela Jihad, da África Ocidental (Mujao), e a Al Qaeda do Magreb, todos ligados à Al Qaeda.
Por detrás da queda de braço, interesses étnicos, religiosos e financeiros.

De um lado tribos bérberes organizadas no MNLA (Movimento Nacional de Libertação do Azawad) e seus ex-aliados pontuais ligados à Al Qaeda, e do outro os interesses comerciais franceses e internacionais em uma região rica em minerais como urânio disfarçados por preocupação humanitária.
Os Bérberes encontram-se espalhados por diversos países do norte da África, sendo os Curdos daquele continente, ou seja, uma população de tamanho considerável, sem Estado, e espalhada por diversos outros Estados onde, em muitos casos, é tratada como inferior, tem sua língua proibida ou sua veiculação dificultada.

No Mali, os Tuaregues, ramo local do povo Bérbere, já ensaiaram dezenas de revoltas contra o governo central malinês com maior ou menor sucesso e buscam a formação de um Estado que abarque todos os Tuaregues em países vizinhos. Parece que não foi desta vez.

Fortalecidos por armamento vindo da Líbia e com soldados treinados por Khaddafi, o MNLA pôde pela primeira vez realmente impor perigo real ao governo malinês.

Após um golpe de Estado no Mali, em 21 de março de 2012, cerca de 3 mil rebeldes do MNLA tomaram de assalto as três grandes cidades de Kidal, Gao e Timbuktu – capitais regionais do norte do Mali – em meio à completa fragilidade do governo central e declararam sua independência.

O Mali vinha passando há meses por um processo de deterioração de suas instituições, seguido por um golpe de Estado e pela imposição de um governo de transição que buscava agregar diferentes posições políticas e foi surpreendido por mais uma revolta Bérbere, desta vez bem sucedida - ao menos temporariamente.

A vizinha Argélia também enfrenta dificuldades no combate tanto aos Tuaregues quanto à minoria Cabile, também de origem bérbere, na região do Mediterrâneo. Desde 1980 e da chamada Primavera Bérbere (que tomou nova força a partir de 2011 junto à Primavera Árabe na vizinha Tunísia) e da Primavera Negra de 2001 (quando perto de uma centena de Béberes Cabiles foram assassinados e milhares ficaram feridos ou mutilados em ações violentas do governo argelino contra manifestações por autonomia em um cenário de revoltas populares locais) lutam por maior reconhecimento de sua língua e cultura no país usando métodos pacíficos de manifestação, que muitas vezes são reprimidas com violência.

Já em abril de 2012 o MNLA e demais grupos islâmicos "aliados" controlavam virtualmente todo o norte do Mali, porém tensões entre estes grupos acabaram por decretar a derrota do MNLA e a perda das principais cidades conquistadas.

Para tanto, o MNLA contou com o apoio de grupos islâmicos radicais, mais interessados na formação de um califado fundamentalista do que em uma pátria para os Bérberes que, em geral, tendem para o laicismo ou para um islamismo moderado.

Financiados muito provavelmente pela Arábia Saudita e por poderosos do Golfo Pérsico, os grupos islâmicos ligados à Al Qaeda buscam se apoderar de uma região que tradicionalmente professou e professa um islamismo moderado, de escola jurídica Malikita e onde o Sufismo, vertente mística e não-radical, impera.

Monumentos Sufis e tumbas de importantes líderes da corrente foram destruídos pelos radicais.
Contra diversos prognósticos, o MNLA foi derrotado por seus aliados pontuais e o sonho de um Azawad livre se tornou mais difícil, mas não o sonho dos islamitas radicais de controlar a região e buscar, por fim, o controle de todo o Mali e de usar este território como base para ataques aos países vizinhos.

Ainda é difícil compreender completamente o que levou o MNLA à derrota em tão pouco tempo, especialmente quando consideramos sua maioria numérica e mesmo superioridade em termos de equipamentos bélicos, mas o fato é que foram virtualmente neutralizados e expulsos das principais cidades conquistadas.

É possível apontar, ao menos em algumas cidades, para a fragilidade do controle do MNLA que não apenas tinha de manter controlados os islâmicos radicais como combater outros grupos locais ligados à etnias minoritárias ou mesmo majoritárias localmente.

Conflitos ainda acontecem em cidades do norte, onde se enfrentam grupos islamitas que agora se opõem a um Estado Bérbere (preferindo a conquista de todo o Mali e a fundação de um Estado islâmico onde impere a Sharia) e o MNLA enfraquecido. O MNLA ainda tem de enfrentar a resistência da população em cidades como Gao, onde a maioria da população pertence a minorias africanas, como Fulas e Songais, que contam com sua própria milícia, e Ganda Iso.

De uma Primavera Bérbere, aos moldes da Primavera Árabe que varreu o Oriente Médio e o norte da África em 2012 e aos moldes dos movimentos autonomistas Cabiles, a situação passou a ser um Inverno Islâmico e um pesadelo real para a França, antiga metrópole que conta com a presença de 2.500 soldados no país e parece ser a única esperança do governo central malinês e de sua população na resistência ao fundamentalismo - mas cujo apoio não virá de graça em uma região rica em minérios.
Esta esperança, porém, sepulta os sonhos da população Bérbere do norte.

O fato é que a ONU busca intervir na região e conta com o apoio do exército francês e do apoio logístico do Reino Unido e da Alemanha. O Conselho de Segurança das Nações Unidas já deu sua permissão para uma ação francesa na região, apesar da discordância pontual dos EUA, que preferia uma ação comandada pela CEDEAO/ECOWAS (Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental), possivelmente para poder depois negociar melhores contratos de exploração dos minérios locais sem ter de passar pela França.

É preciso ainda recordar que originalmente o MNLA encontrou forças e armamento para derrotar o exército malinês no norte do país devido à intervenção dos EUA na Líbia, que conta também com significativa minoria Bérbere (Tuaregues e outros) que integrava, dentre outras, as forças de elite do exército de Khaddafi.

A situação, ao menos do ponto de vista diplomático, parece mais simples do que a situação, por exemplo, da Líbia e da Síria, onde existia resistência a uma intervenção, no caso da Líbia, e onde ainda existe muita confusão sobre os diversos grupos que se degladiam, no caso da Síria, e cujo governo ainda conta com apoio da Rússia e da China, tornando uma decisão na ONU difícil.

No caso do Mali, nem os islâmicos radicais ligados à Al Qaeda nem os rebeldes Bérberes contam com apoio internacional, ao menos não declarado - ainda que seja provável o apoio de radicais e milionários sauditas aos guerrilheiros islâmicos. Uma intervenção militar estrangeira torna-se portanto, factível, apesar do pouco interesse que o governo francês ou qualquer outro possa ter em ir para a linha de frente em uma batalha que pode custar vidas e trazer perdas políticas em casa.

Apenas os minérios e a possibilidade de contratos vantajosos - a região do norte do Mali, Azawad, é rica em minérios - justificam uma intervenção, assim como, em menor parte, o temor do fortalecimento de guerrilhas islâmicas na região do Magreb, que poderia causar impactos em todo o norte da África
O líder do Mujao, Abou Dardar, chegou a ameaçar atacar "o coração da França" caso o país mantenha sua cooperação militar com o Mali no combate às milícias islâmicas. Em Paris, o nível de alerta terrorista foi elevado e a segurança de pontos turísticos e de interesse reforçada.

Por outro lado, lideranças no MNLA ofereceram-se para ajudar a França a derrotar os islâmicos, mas não se sabe qual é o preço de sua ajuda e, tampouco, se estão dispostos a abrir mão de sua independência efêmera (que durou apenas de abril a junho de 2012) para receber ajuda externa no combate aos islâmicos. De fato, é complicado saber se o MNLA receberá ou oferecerá ajuda nesta questão, tudo depende de complicados arranjos políticos.

Enquanto a situação do Mali piora, militantes islâmicos impõem a Sharia pelo norte do país e já há casos reportados de penas de amputação aplicadas a criminosos e penas a quem insiste em ouvir música ou mesmo a quem utiliza toques de celular considerados "não islâmicos".

Na vizinha Argélia, centenas de estrangeiros foram feitos reféns por um grupo islâmico solidário aos radicais islâmicos malineses, possivelmente o braço da Al Qaeda no país, e vários foram mortos após a intervenção do exército do país. Outros ataques de milícias islâmicas solidárias não podem ser descartados.

Quando da tomada de poder por parte dos Bérberes do MNLA e a fundação do Estado de Azawad, o temor era do espalhamento do conflito com a adesão de grupos Bérberes de países vizinhos.
Hoje, o temor não é mais o de uma nova Primavera Bérbere, mas de um levante islâmico na região do Magreb que coloque a segurança internacional em risco.

Publicado originalmente no Brasil de Fato.
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segunda-feira, 16 de abril de 2012

A crise do Mali e o “Curdistão” Bérbere

Artigo publicado no jornal Brasil de Fato 476 (12-18 de abril), ainda nas bancas!

Um conflito pouco conhecido, porém sangrento, que remonta a formação das fronteiras (artificiais) pós-coloniais do norte da África recentemente teve mais um capítulo escrito.

A população Bérbere (subdivididos em grupos como Amazighs, Tamasheqs ou Tuaregues, dentre outros) luta há décadas contra os governos da Argélia, Mali, Burkina Fasso e Níger pela independência do povo que pode ser considerado o paralelo africano aos Curdos, que há décadas lutam, enquanto maior nação sem pátria do mundo, por um Estado, o Curdistão.

Pela África

Os Bérberes habitam a região do norte da África há séculos e constantemente foram subjugados pelos dominadores árabes, por impérios regionais, como o Songhai, e posteriormente pelos europeus, sem jamais terem o direito a um Estado – ou mesmo a vários Estados, dado que os diferentes grupos berberes não reivindicam uma unidade entre todas as tribos. A ideia de um “Berberistão”é ainda mais embrionária que a de um Curdistão unido.

Espalhados pelo território de diversos países, os berberes tem notável força local na Argélia, onde lutam há décadas pelo Estado de Cabília, na costa do país, e no Mali, onde acabaram de fundar o Estado de Azawad que, não se sabe, pode ser apenas efêmero.

Na Líbia, os berberes encontravam relativa autonomia e engrossavam as fileiras do exército de Muammar Khadafi e daí vem parte do “problema” enfrentado hoje pelo governo do Mali, ou melhor, por líderes que buscam assegurar o governo do país.

Tomando o poder

Um grupo de rebeldes Tuaregues (ou Tamasheqs, como preferem ser chamados localmente) tomou de assalto as três grandes cidades de Kidal, Gao e Timbuktu – capitais regionais – do norte do Mali em meio à completa fragilidade do governo central, comandando provisoriamente por uma junta militar que havia dias antes (em 21 de março) deposto o presidente do país, Amadou Toumani Touré.

Munidos de armamento vindo do exército líbio, os cerca de 3 mil rebeldes do MNLA (Movimento Nacional de Libertação do Azawad) conseguiram facilmente dominar as tropas oficiais que, em sua maioria, fugiram ao primeiro sinal de problema. Uma parte considerável dos Tuaregues do norte do Mali e da Líbia servia no exército de Muammar Khadafi, deposto e morto por rebeldes apoiados pelos EUA e França há alguns meses dentro da onda que ficou conhecida como Primavera Árabe.

Após a derrota de Khadafi, retornaram com força total ao Mali.

Em poucos dias toda resistência oficial foi superada e o MNLA reivindica total controle da região , chegando a declarar finalmente sua independência. Em algumas cidades divide o poder com grupos rebeldes de caráter islâmico, como o Ansar Dine e aparentemente terão mais problemas em combater estes grupos do que o exército central propriamente dito, ao menos por ora.

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terça-feira, 13 de março de 2012

O que há de errado com #Kony2012 ou a ingênua "boa vontade" estadunidense

Acredito que muitos (todos?) conheçam o vídeo da ONG "Invisible Children" #Kony2012:
O objetivo da ONG não era homenagear Kony, líder do grupo rebelde Lord’s Resistance Army, de Uganda, tristemente conhecido por sequestrar garotos de suas famílias e, pelo medo, transformá-los em guerrilheiros, matando e mutilando suas famílias e seus vizinhos. O anonimato facilitava a fuga de Kony pela África, por isso a Invisible Children se propôs a torná-lo uma celebridade divulgando seu rosto e fazendo com que cada pessoa no mundo possa identificá-lo e prende-lo ainda em 2012.
O vídeo bateu todos os recordes no Youtube, foi o mais visto da história e, à medida que se aproxima a data marcada para o evento mundial programado pela ONG, o sucesso da iniciativa ficou absolutamente claro.

O vídeo é muito bem feito - apesar de ter sido criticado por ser muito caro -, e a propsota de mobilização idem. Poucas vezes vi uma campanha basicamente online - mas com desdobramentos offline, claro, e com iniciativas offline - ser tão bem feita, ter atingido tão perfeitamente um alvo e causar tamanha repercussão.


Além das redes sociais, após imenso sucesso, o vídeo, a campanha e a ONG foram citadas e saudadas na mídia convencional, garantindo aind mais visibilidade.

Mas, enfim, porque critico e chamo-os de ingênuos.

Bem, a ONG basicamente nasce da iniciativa de um rapaz que, abismado e revoltado com a violência em Uganda perpetrada por Joseph Kony e pelo LRA (Exército de Resistência do Senhor), um grupo cristão fanático e assassino, resolve fazer alguma coisa para acabar com o grupo, através da prisão de seu líder.

Já acredito caber uma crítica inicial, a de que talvez seja ingênuo acreditar que um grupo com milhares de adeptos simplesmente se desmobilizaria pela prisão/morte (ainda que a ONG pregue a prisão e não a morte, mas sabemos que a segunda opção é até maisprovável) de seu líder. O grupo poderia se enfraquecer, é verdade, mas também poderia se dividir em pequenos e ainda mais fanatizados grupos, pulverizados e de maior mobilidade.

Mas este nem é o principal problema.

A grande questão está na forma escolhida para mobilizar, além da via online e através de ativistas, e no que pregam como solução para prender/matar Kony.

Primeiro, vamos à questão da mobilização.

A ong escolheu um numero de "celebridades" e políticos, mas sem se preocupar absolutamente com posições ideológicas, chegando a aceitar o apoio de Rush Limbaugh, um conhecido fanático racista de extremíssima direita.

Acho lindo que alguns queiram colocar as diferenças ideológicas acima de uma causa, mas para tudo há limite. E Limbaugh não é o único exemplo utilizável, talvez apenas o mais fácil.

A idéia de colocar a causa acima de ideologias pode esbarrar em obviedades, como a de um fanático participando de uma campanha contra outro fanático.

Segundo ponto, e talvez o mais problemático, é o de "como" a ong propõe uma solução: Através do envio de tropas dos EUA - mesmo que "apenas" como consultoras à Uganda.

Vejam bem, quem, de forma sensata, iria querer mandar marginais uniformizados, capazes de cometer os piores atos de genocídio, para resolver um problema em Uganda?

Não acredito que o exército local seja capaz - ou mesmo queira - resolver o problema, mas acredito que seja muito mais interessante - além de viável e politicamente mais simples - o envio de tropas da União Africana ou mesmo tropas de paz da ONU com mandato para agir (e não para servirem de palhaços como no Genocídio de Ruanda, país vizinho).

Me parece algo da típica ingenuidade de muitos estadunidenses, que acreditam piamente que seu exército e seu país são verdadeiros bastiões da liberdade e que servem como pacificadores no mundo. Nada poderia ser mais mentiroso.

Disfarçada de boas intenções (e acredito que seja isso mesmo), a campanha da ONG se propõe a ampliar a presença dos EUA na região, encruzilhada importante na África, em um país vizinho de países problemáticos e que interessam aos EUA, como o Sudão do Sul e o rico Congo, e a um pulo do Chifre da África.

Geopoliticamente - e economicamente - uma região de grande importância e interesse.

E que melhor chance para os EUA entrarem lá e andarem livremente do que à convite, motivados por uma campanha internacional pela paz na região?

É o momento em que a ingenuidade ativista se junta com a vontade política de um Estado criminoso e poderoso com permissão - carta branca - para treinar, "acessorar" e manipular um exército livremente, no caso, o de Uganda. Todos sabemos o que significa a intervenção dos EUA em países estrangeiros, não é preciso ir muito longe.

Abrir um precedente desses, de uma espécie de intervenção dos EUA como forma de dar vazão aos anseios de ativistas bem intencionados é extremamente perigoso. NAda impede que, futuramente, o próprio governo dos EUA possa se valer de alguma ONG de fachada com alguma campanha bem bolada para influenciar a opinião pública a apoiar invasões e terrorismo de Estado... Se bem que...

A campanha, mesmo bem intencionada - e estou dando um crédito a eles -, caiu como uma luva no colo dos interesses estadunidenses.
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sexta-feira, 22 de julho de 2011

Homofobia cristã ataca novamente: Prendam todos os Sodomitas!

Paul Evans Aidoo, Ministro Regional do Oeste de Gana pode ser considerado o Bolsonaro do país. A diferença é que o primeiro tem efetivo poder.

Ontem, seguindo ordens do "Conselho Cristão de Gana" que, como a maioria dos grupos cristãos diz defender o amor e a paz, mas apenas para aqueles que concordam com suas idéias, decretou a prisão de TODOS os gays e lésbicas da região sob seu controle imediato.

O "Conselho Cristão de Gana", obviamente, é  formado por 5 organizações evangélicas. Nenhuma delas neopentecostal e, inclusive, conta com a participação dos Anglicanos que, no Reino Unido e nos EUA tem dado passos largos na aceitação e respeito aos homossexuais, inclusive com a ordenação de um Bispo gay, nos EUA. O ramos africano, infelizmente, continua na era medieval.

Ele mandou o Bureau Nacional de Investigações (BNI) e todas as agências de segurança "desmascararem pessoas suspeitas de se envolverem em [atividades] homossexuais". Além disso, como toda boa caça às bruxas cristã, pede aos cidadãos uqe denunciem qualquer pessoa que lhes pareça suspeita.

Acredita-se que ao menos 8 mil pessoas, em sua região, estejam regstradas como gays ou lésbicas e o ministro exige que sejam afastados da sociedade.


Segundo o site Ghana to Ghana:
Sua ordem vem depois de meses de campanha contra a práticda (sic) da homossexualidade no país.
O Conselho Cristão de Gana, na segunda pasada, também condenou a crescent incidência da homossexualidade no país, depois de outros órgãos religiosos terem ido para as ruas protestar contra a prática (sic), urgindo aos ganenses que não votassem em políticos que acreditam nos direitos dos homossexuais.
[...]
Ele [Aidoo] disse que uma vez eles [os homossexuais] presos, serão levados perante o tribunal para testar a lei que condena a homossecualidade.
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Mais informações, em espanhol.
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A homossexualidade em gana é punida com prisão, manifestações homofóbicas já aconteceram no país e este é apenas mais um passo no caminho da medievalização final, do assassinato de gays em praça pública, com cânticos cristãos animando a "festa" e todos louvando o "senhor" em glória.

Mas não se enganem, Malafaias da vida e outros Marginais da Fé, assim como gente da laia de Bolsonaro, de Luiz Gonzaga Bergonzini (Bispo de Guarulhos) e Myrian Rios tem a MESMA intenção aqui no país.

Coisas absurdas em um país laico, como a existência de uma Bancada Evangélica ou mesmo a mera presença de símbolos religiosos em prédios públicos são um indício de que nunca a população LGBT estará segura.

Que fique claro que sei perfeitamente que nem todo cristão é homofóbico ou compartilha das opiniões criminosas de certas autoridades, de certos marginais, mas da mesma forma, o que fazem para combater este mal? Se insurgem quando seu padre ou pastor declara que a homossexualidade (ou o homossexualismo, para eles) é uma doença condenável? Se revoltam e denunciam a homofobia de suas lideranças? Ou continuam a louvar o Papa Reichtzinger e pastores caça-níquel?

A luta contra a homofobia não é apenas pela tolerância e respeito, mas é também pela defesa de um Estado inclusivo, em que TODO@S possam ser respeitad@s como cidadã(o)s e tenham seus direitos assegurados, não apenas os direitos ligados à orientação sexual e identidade de gênero, mas também os reprodutivos e os sociais.
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quinta-feira, 5 de maio de 2011

Os EUA não conseguem aprender História

A notícia de que Obama autorizou a CIA - a mesma que com muita eficiência apontou a existência de armas de destruição em massa no Iraque e previram com precisão os ataques às Torres Gêmeas - a repassar armas e dar apoio aos rebeldes líbios quase passou despercebida pela maior parte dos veículos de mídia, e mesmo pela blogosfera.

Não vale nem discutir a legalidade de tal ação frente à resolução 1973, pois a ilegalidade é clara e absoluta.

Se é verdade que reza na Resolução fazer de tudo para defender os civis, por outro isto não quer dizer que armar um dos lados seja legal. Há um embargo de armas imposto ao país e, até onde sei, este embargo vale para qualquer tipo de armamento que possa entrar na Líbia, não importa o lado.

Os artigos 13-16 da Resolução 1973 deixam claro que há um embargo completo de armamentos ao país e em momento algum discrimina que o embargo vale apenas para o governo, logo, é total, não importa para que lado se entregue armas.

O objetivo da Resolução era claramente o de garantir uma no-fly zone para, então, evitar a morte de civis no conflito e para, finalmente, buscar equilibrar a capacidade das forças.

Mas, em se tratando de uma guerra civil, não cabia - não cabe - a nenhum Estado intervir tomando lados. Tudo isto tratei em post anterior, recomendo a leitura.

A questão agora, porém, é a da incapacidade dos EUA em aprender com os próprios erros, de compreender a história por detrás de suas intervenções e, ainda, de seu apoio a um dos lados do conflito de forma descarada e inconsequente.

Quando pensamos nos EUA armando rebeldes contra um inimigo, logo nos vem à mente os Mujahideens do Afeganistão, dentre eles, Osama Bin Laden.

Sem se importar com quem estavam financiando, mas apenas com o inimigo, a URSS, os EUA acabaram por criar a base para o que logo viria a se tornar o maior foco do que o Império chama de Terrorismo. Os EUA são diretos responsáveis pelos atentados de 11 de Setembro, pois foram eles que criaram, treinaram e armaram Bin Laden e sua trupe. O Taleban é criação dos EUA.

Mas o Império não parou por aí. Saddam Hussein é outro que foi financiado pelos EUA, que o apoiaram de forma entusiasmada, como uma forma de segurar o Irã pós-1979. Tiro no pé. Saddam não só resolveu testar os presentinhos recebidos pelos EUA - além do dinheiro e armas convencionais ele recebeu armas químicas - nos Curdos, como invadiu vizinhos e saiu do controle.

Mas não para por aí. Reza a lenda que o Hamas chegou, em certa época, a ser financiado pelos EUA, como tentativa de servir de contraponto ao Fatah, o até então todo poderoso grupo político, encabeçado por Arafat. E vejam no que deu.

Não é preciso nem falar no papel dos EUA e aliados na própria Revolução Islâmica de 1979, no que fizeram com Mossadegh.

Exemplos outros não faltam. Os EUA costumeiramente intervém em guerras que não são suas, colocam grupos uns contra os outros e, no fim, acabam tendo que apagar o incêndio que criaram. Tudo isto às custas da destruição de países, de modos de vida, de povos...

Será que estamos diante de mais um exemplo disto?
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terça-feira, 15 de março de 2011

Líbia, intervenção e a ideologia dos direitos humanos


Assunto atual e da maior relevância em todas as discussões sobre os conflitos ou revoluções no Oriente Médio é a da possível intervenção militar e no-fly zone na Líbia. De um lado aqueles que acusam as manobras pela intervenção uma tentativa dos EUA assegurarem o escoamento de petróleo do país e de novamente azeitarem sua indústria bélica, do outro, aqueles com intenções humanitárias, que defendem uma intervenção sem pensar nas consequências a longo prazo.

De certa maneira ambos os lados estão corretos. Sim, estamos diante de um avanço significativo das tropas do ditador Khadafi, mas sabemos que uma intervenção dos EUA jamais será feita por respeito aos direitos humanos e pela democracia e sim pela chance de conquistar.

O foco dos questionamentos, ao meu ver, está totalmente errado.

Nem adianta chorar pelos direitos humanos alheios, esperando que uma intervenção - que causará milhares de mortes e poderá destruir a infra-estrutura do país e deixar cicatrizes profundas - e muito menos adianta espernear dizendo que o melhor é deixar que os Líbios resolvam seus problemas, como se a comunidade internacional não tivesse qualquer responsabilidade pela situação (a mesma comunidade que enxotou a Líbia do cenário internacional e depois a recebeu de braços abertos de olho no petróleo e dinheiro líbios, nada mais hipócrita).

Sobre este ponto, o professor Reginaldo Nasser foi certeiro:
Na verdade, a chamada comunidade internacional não é uma comunidade: são os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, tal.  O Mubarak foi aceito por eles há muito tempo e o Gadaffi adotaram recentemente, desde 2003.  Essa reintrodução do Gadaffi na comunidade internacional foi feita num acordo muito bom para as duas partes. As reservas de petróleo da Líbia tornaram-se cada vez mais exploradas, pela Shell, BP, Exxon, etc. O Gadaffi declarou que estava suspendendo toda e qualquer forma de produção de armas de destruição em massa, que é uma obsessão dos Estados Unidos. O Huffington Post mostrou o lobby pró-Líbia dentro do Congresso americano, um lobby que já existia antes da suspensão. Um lobby que envolve petróleo, indústria de armas e universidades.
Do lado dos defensores dos Direitos Humanos acima de tudo temos a defesa da intervenção a qualquer custo, como se ela fosse a tábua de salvação da Líbia e do lado dos não-intervencionistas o longo prazo de uma ação dos EUA seria muito pior quantitativa e qualitativamente para a Líbia e para toda a região.

Diz Daniel Lopes, do Amálgama:
Rebeldes batendo em retirada de Ras Lanuf também pedem para a ONU impôr a zona de exclusão aérea. E a Liga Árabe, que se reuniu neste final de semana no Cairo, aderiu à ideia. Por fim, confiram as esperanças das mulheres de Benghazi, nesse vídeo da Al Jazeera. O que aconteceria com essas pessoas se os bandidos de Kadafi chegassem até a cidade?
De fato, os líbios pedem ajuda. Mas é preciso ter em mente: Que ajuda? O bombardeio da infra-estrutura líbia ajudaria, em longo prazo, o povo, ou apenas os tornaria reféns de investimentos estrangeiros e das potências ocidentais? Trocariam um ditador por outro?

Mas, ao mesmo tempo, como discordar de Antônio Costa?

O maior risco – que não tem paralelo na situação europeia de 1848 – é o de uma intervenção direta dos Estados Unidos. É uma loucura, mas crises de abstinência provocam loucuras e o país não se mostra disposto a se livrar de sua dependência do petróleo, nem sequer a admitir ser ela um problema. E é perfeitamente possível, dados o histórico do Iraque e a movimentação de navios e marines em torno da Líbia, que indica, no mínimo, que o dedo no gatilho está coçando. Seguramente seria desastrosa, graças à absoluta incapacidade dos EUA de entender o ponto de vista dos países muçulmanos e atuar de maneira politicamente consequente no longo prazo, seja no Afeganistão, seja no Iraque, no Paquistão, na Líbia ou na Arábia Saudita.
E também temos líbios que rechaçam a intervenção.

Mas, o discurso sobre a intervenção está deslocado. A questão em si não é discutir se haverá intervenção, mas QUAL intervenção. está claro que aqueles que vão contra a invasão dos EUA vão contra a ação deste único país, investido ou não de poder pela ONU, de se apoderar do petróleo Líbio.

O problema não está na intervenção, que a cada dia se prova mais necessária, mas em quem liderará ou mesmo em quem agirá sozinho em uma possível investida armada contra Khadafi.

O discurso ideologizado desta forma não serve a ninguém, apenas aos EUA que se impõem como salvadores frente à crise humanitária que se desenha, enquanto seus detratores não apresentam propostas viáveis, como uma ação coletiva das Nações Unidas com comando compartilhado.

Artigo completo no Amálgama.
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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Tunísia e possibilidade de "contágio": Um novo Oriente Médio?

Muitos - tanto na grande mídia como na mídia cidadã - tem especulado sobre a possibilidade do ideal da revolução tunisiana se espalhar pelos demais países do Oriente Médio, notadamente o Egito e a Síria.

Não se pode negar a possibilidade de que eventos semelhantes ocorram - no egito um homem imolou-se no Cairo, repetindo o ato desesperado do jovem Mohamed Bouazizi, 26 anos, da cidade de Sidi Bouzid, "gatilho" para a revolução.

Os fatos por detrás do levante popular são conhecidos e vem sendo analisados exaustivamente pela mídia - aliás, recomendo a excelente cobertura que vem fazendo o pessoal do Global Voices - mas acredito que exista uma euforia um tanto quanto exagerada no que concerne o Oriente Médio como um todo.

Em primeiro lugar, sejamos francos, o povo efetivamente expulsou o ditador Ben Ali do país, mas o poder continua nas mãos de seus aliados. E exército ainda não tomou posição clara e o povo não está no poder ou sequer teve a oportunidade de votar - o que, também, não garante democracia.

Os protestos continuam no país, na busca de derrubar um governo de transição cujo controle está nas mãos dos mesmos que o povo derrubou, ou tentou derrubar. A revolução está ainda incompleta.

A situação atual é de anarquia, falta de controle e medo, apesar de ainda restar esperança.

A Tunísia é um país que dificilmente encontra paralelos na região. A Turquia talvez seja um dos raros países que poderiam servir como comparação - mas esta já é uma democracia, por mais que imperfeita.

Com um nível de laicismo semelhante talvez só a Síria, mas a agência oficial local sequer mencionou os recentes acontecimentos na tunísia e o blecaute informacional não deve cair tão cedo. E, diferentemente da Tunísia, a Síria pode invocar o inimigo externo (EUA e Israel) e mesmo um interno (a comunidade Curda no norte que já vive em situação perpétua de medo e sofrendo violações) na tentativa de repelir qualquer tipo de tentativa de desestabilização.


Isto significa que qualquer levante popular seria abafado ainda com mais veemência e brutalidade pela polícia -e provavelmente pelo exército -, sendo taxado de ação patrocinada pelos EUA - como tentou o governo iraniano acusar os "verdes" apoiadores de Moussavi.

O Irã, aliás, é um bom paralelo para a situação. O governo se manteve no poder, em parte, por conseguir unificar forças contra os manifestantes que, diziam, trabalhavam para os EUA. A tese do inimigo externo funcionou perfeitamente, ainda que não fosse inteiramente verdadeira. E, claro, trato aqui em termos simplistas, afinal seria preciso uma mobilização ainda mais forte para desestabilizar de forma efetiva o governo que tinha o exército e a Guarda Revolucionária ainda amplo apoio.


O governo da Tunísia, por outro lado, era aliado dos EUA, ou seja, não faria sentido em seus patrocinadores darem um golpe ou tramarem algo do tipo. Não que fosse impossível, mas ao menos não serve como desculpa para deslegitimar a população em revolta. A tese do inimigo externo caiu por terra e, por ser um país majoritariamente laico, pouco se podia dizer sobre um "perigo muçulmano".

Este apoio dos EUA e de seus aliados, aliás, se reflete nas parcas informações pré-revolução em comparação com a imensa cobertura dada pela mídia aos protestos no Irã. A mídia tem interesses e não esconde - ou tenta e acha que somos tolos. Isto, obviamente, não diminui nem a relevância da revolução tunisiana e nem os protestos no Irã.

O fato de ser fato consumado e de que a Tunísia se trata de um país muçulmano, mas majoritariamente laico, sem que nenhum grupo militante islâmico ameace a estabilidade, facilita a aceitação por parte da comunidade internacional de um novo governo, seja ele o escolhido pelo povo ou outra ditadura amiga.

O problema desta revolução se espalhar reside exatamente aí, na militância islâmica. No perigo islâmico, seja ele real ou não.

É neste ponto em que os mais entusiasmados com a possibilidade de revolução semelhante ocorrer no Egito, por exemplo, se perdem. Os recentes e constante ataques à população Copta colocam em xeque a idéia de que as comunidades religiosas vivem em paz e harmonia no país e de fato existe o perigo de uma islamização do Egito, o que seria péssimo para os interesses dos EUA na região e, obviamente, neste caso, é difícil não convergir até esta tese.

O governo de Hosni Mubarak é uma fachada, mas é laico. Um levante popular dificilmente manteria este caráter do Estado egípcio, o que faria a máquina americana se mover. O mesmo vale para boa parte dos países do norte da África, seja pela população em si, seja pela forte presença de grupos islâmicos militantes.

De qualquer forma, o fato é que todos os atuais ditadores devem estar tomando as medidas necessárias para evitar que algo semelhante aconteça: Tortura, prisões, leis restritivas, espionagem... E, no caso dos aliados dos EUA, deve já ter recebido ofertas de ajuda - entenda como quiser.

O caráter de um levante em países onde o laicismo não é forte ou o princípio básico, seria desde o começo diverso do Tunisiano: O objetivo não seria "democracia", mas a provável implantação de um regime islâmico, com aplicação da Sharia e etc. Não podemos deslegitimar o motor de descontentamento, mas a possibilidade de um governo laico vinda de processos revolucionários no Egito, por exemplo, é pequena.


Fica o dilema final, melhor um Estado ditatorial laico que impõe severas restrições ao seu povo ou uma "democracia" islâmica que também imporia severas restrições ao seu povo?
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quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Saara Ocidental, terra ocupada - Artigo no Brasil de Fato

Artigo sobre a crise recente no Saara Ocidental que publiquei no site do jornal Brasil de Fato (e depois publicado também no Opera Mundi):

À medida em que o Marrocos retoma algum controle, a ONU novamente se retira de cena, deixando o povo saraúi à mercê dos marroquinos
14/01/2011
Raphael Tsavkko Garcia
Empobrecido e virtualmente desconhecido por boa parte do mundo, o Saara Ocidental enfrenta uma de suas maiores e piores crises, que poderia ter acabado em uma sangrenta guerra civil.
O Saara Ocidental foi, até 1974-1975, um território espanhol e, com a descolonização durante o regime franquista - na verdade mais um abandono da região -, o território, à revelia de seus habitantes, os saraúis, foi dividido entre áreas de influência marroquina e mauritana.
Os exércitos dos respectivos países invadiram a fronteira do Saara Ocidental e o ocupam militarmente sem respeitar determinação da ONU que havia recomendado um referendo entre a população local para que decidissem seu destino ou mesmo a recomendação da Corte Internacional de Justiça que considerou ilegítima a soberania do Marrocos e da Mauritânia sobre a região.
Insatisfeitos em se verem divididos e terem negado seu direito à autodeterminação, os saraúis se organizaram na Frente Polisário, um amálgama de partido político e exército de liebrtação nacional. e começaram a lutar por seus direitos, num conflito que persiste até hoje com o Marrocos, que domina a maior parte do território com mão de ferro e mantém uma política de apartheid social e forte controle sobre a população nativa.
A Frente Polisário (Frente Popular para a Libertação de Saguia el Hamra e Rio de Oro), que já combatia o governo espanhol e lutava pela independência desde o começo dos anos 70, passou então a combater dois países invasores em uma luta desigual.
Em 1976, em meio à luta contra a Mauritânia- que será finalmente derrotada e empurrada para sua antiga fronteira em 1979 - e o Marrocos, a Frente Polisário proclamou a República Árabe Saraúi Democrática que, hoje, controla apenas uma pequena parcela do território - cerca de 20% - fronteiriço à Mauritânia e Argélia.
Durante anos o Marrocos construiu um muro para separar os territórios sob seu controle dos territórios - desérticos em sua maioria - sob controle da Frente Polisário, em um modelo semelhante ao do muro de separação construído por Israel e apelidado de Muro do Apartheid, por isolar a população Palestina de seus territórios de direito.
Este muro contribuiu para o agravamento da situação dos direitos humanos da população saraúi que, do lado marroquino do muro, é vítima de abusos e discriminação pela população marroquina emigrada e pelas autoridades do país invasor, e do lado da Frente Polisário sofre com a fome, a falta de água e de condições básicas de saúde e habitação.
Milhares de saraúis ainda vivem em campos de refugiados na vizinha Argélia (ao menos 160 mil vivem no campo de Tinduf) e mesmo em campos mantidos por organizações internacionais no território administrado pelos rebeldes.
O Marrocos não se contentou em apenas ocupar militarmente o Saara Ocidental, mas também promoveu uma gigantesca onda de migração de marroquinos ao território esparsamente povoado, o que dificulta ainda mais qualquer tentativa das Nações Unidas de promover um referendo regional pela independência - algo que está em pauta desde os anos 70.
A chamada "Marcha Verde" promovida pelo então rei Hassan II em 1975, levou pelo menos 350 mil marroquinos à região para, assim, formar uma maioria populacional e garantir sua dominação.
Em meio à morte de Francisco Franco, a Espanha pouco pôde - ou mesmo quis - fazer para pressionar por uma solução pacífica da questão. Desde 1974 a Espanha anunciava a intenção de realizar um referendo pela independência da região, algo que nunca passou de uma intenção, pois no mesmo ano a então colônia foi invadida pelo Marrocos e, com a morte de Franco em 1975, a Espanha abandonou definitivamente a população local a sua sorte.
A ONU, por outro lado, embasada na resolução 1548 da Assembléia Geral, denunciava desde meados dos anos 60 a situação de dominação colonial na região, mas desde então pouco fez de efetivo.

O conflito na região também se insere na lógica da Guerra Fria, com os EUA discretamente apoiando os interesses marroquinos em oposição aos interesses da Argélia. Era do interesse dos EUA garantir aquele território ao seu aliado marroquino e frustrar os planos da Argélia e da União Africana, que havia em grande parte reconhecido o direito dos saraúis à terra, numa tentativa de afastar o perigo do Comunismo daquela área tão próxima da Europa.
Desde a trégua declarada em 1991 que a ONU vem tentando fazer os dois lados conversarem e buscarem uma solução para o conflito, que intercala períodos de maior e menor intensidade de enfrentamentos armados. Constante, porém, é a política de repressão, limpeza étnica e até mesmo genocídio por parte do Marrocos.
Marrocos e Frente Polisário estão em constante desacordo sobre os termos de um possível referendo a ser celebrado na região sob os auspícios da ONU, em especial sobre o censo populacional e sobre quem teria direito a votar. Os sarauis não aceitam que marroquinos emigrados, logo, invasores, tenham direito ao voto, enquanto o Marrocos não abre mão do voto deste contingente que, hoje, pode garantir à este país uma vitória contra os verdadeiros donos da terra.
O Marrocos ainda se opõe ao direito ao voto da população saraúi que vive no campo argelino de Tindouf, pois muitos vivem ha tanto tempo no exílio que seus filhos nasceram na Argélia e jamais colocaram os pés no território do Saara Ocidental. Situação esta que encontra amplos paralelos com a posição de Israel frente ao Direito de Retorno dos Palestinos. Válido notar, também, que a franca maioria dos saraúis vive, hoje, em campos de refugiados.
O Marrocos considera o Saara Ocidental como parte indivisível de seu território e apenas aceitaria um referendo patrocinado pela ONU se seus requisitos fossem obedecidos, ou seja, se a maioria da população da região fosse impedida de exercer seu direito ao voto. Todas as tentativas de diálogo por parte do rei marroquino, Mohammed IV, pregam um processo de "regionalização" do Saara Ocidental e de permitir uma maior autonomia local apenas dentro do Estado marroquino.
Mohamed Abdelaziz, líder da República Árabe Saraúi Democrática, obviamente, se recusa sequer a conversar enquanto o Saara Ocidental for considerado mera região do Marrocos, sem direito pleno à autodeterminação.
Desde 2009 os ânimos estão mais acirrados do que nunca. Em novembro de 2009 a ativista saraúi Aminatu Haidar iniciou uma greve de fome no aeroporto de Lançarote, nas Ilhas Canárias, para exigir do Marrocos o direito de voar de volta à sua terra. Haidar é considerada a principal embaixadora da causa saraúi e sua recusa em se identificar como marroquina a levou a ser impedida de chegar ao Saara Ocidental.
Sua greve durou mais de 30 dias e mobilizou artistas, personalidades e governos em seu apoio e a causa do Saara Ocidental conseguiu alcançar as principais manchetes internacionais, causando grande preocupação ao governo marroquino.
Haidar permanece em prisão domiciliar desde então, na capital do Saara Ocidental, El Aaiún, vigiada 24h por tropas marrroquinas.
Menos de um ano depois deste episódio, em outubro de 2010, os Saraúis resolveram novamente elevar o tom contra a ocupação marroquina e milhares de pessoas (cerca de 20 mil segundo algumas fontes) deixaram a cidade de El Aaiún para protestar contra a ocupação e montaram o acampamento de Agdaym Izik, ou Acampamento Dignidade.
A idéia do acampamento era o de constranger o governo marroquino e fazer o mundo conhecer a situação do povo saraúi submetido a mais de 30 anos de ocupação, pese as inúmeras tentativas da ONU para resolver o conflito. O objetivo dos que acamparam é o de denunciar a exploração econômica das riquezas do país (especialmente o fosfato) e exigir o reconhecimento da soberania do Saara Ocidental.
Já no começo de novembro de 2010 as forças marroquinas invadiram o acampamento com gases lacrimogêneo, bombas de efeito moral e armas pesadas para desalojar os manifestantes, deixando um saldo de pelo menos 5 mortos (fontes dizem que os mortos podem chegar a 15). Os demais milhares de manifestantes forma levados a força para a capital, para delegacias da cidade e prisões.
A violenta invasão do acampamento causou revolta na população saraúi que permaneceu na cidade e prédios públicos foram queimados enquanto o exército marroquino abatia a tiros os revoltosos.
O nível de tensão, no fim de 2010, foi o mais alto desde a trégua de 1991 e a revolta por parte da população ainda pode resultar em uma guerra civil que levaria toda a região ao caos.
Apenas com extrema violência o Marrovos vem conseguindo manter a situação sob um certo controle, baseado no mais puro medo de uma repressão ainda mais terrível e feroz.
O Marrocos não reconhece a existência de um povo saraúi, mas apenas de um único povo marroquino. Curioso notar que, mesmo assim, o exército do Marrocos não exita em matar indiscriminadamente aquele que seria seu próprio povo.
A insistência da Espanha em se recusar a condenar ou mesmo a reconhecer a gravidade da situação agrava o problema, visto que, da Europa, é o país com os maiores interesse e sua inação acaba por enfraquecer qualquer apelo que possa ser feito à ONU.
A Argélia, um dos poucos países a reconhecer a independência do Saara Ocidental, poderia ser levada ao conflito graças ao enorme campo de concentração dentro de suas fronteiras e da grande quantidade de refugiados em seu território. Seria a base operacional mais óbvia para as ações da Frente Polisário.
A Mauritânia provavelmente seria trazida ao conflito pela leva de refugiados que uma guerra civil pode causar e o Marrocos, sem sombra de dúvida, seria a principal vítima dos ataques dos rebeldes da Frente Polisário, assim como a própria população saraúi, empobrecida e abandonada.
A ONU demonstra mais uma vez sua inutilidade ao se limitar a pedir calma e diálogo sem, porém, tomar atitudes efetivas para a resolução do conflito e para amenizar minimamente o sofrimento da população saraúi. À medida em que o Marrocos retoma algum controle, a ONU novamente se retira de cena, deixando, como de costume, o povo saraúi à mercê dos marroquinos e de sua vingança por mais uma revolta.
Raphael Tsavkko Garcia é bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestrando em comunicação pela Faculdade Cásper Líbero.
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sábado, 4 de setembro de 2010

Coluna Semanal no Diário Liberdade - A Não-violência enquanto tática, uma visão histórica e o caso palestino – Parte 2

Quinta coluna para o portal anticapitalista Diário Liberdade, "Defenderei a casa do meu pai".

A Não-violência enquanto tática, uma visão histórica e o caso palestino – Parte 2

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O Oriente Médio e o conflito permanente.

Chegando ao Oriente Médio, podemos notar que a resistência pacífica dos habitantes das pequenas vilas de Bil'in, Nil'in ou outras resultou em ganhos efetivos, mas locais, limitados e longe de satisfatórios para toda a população. O ganho, na verdade, é moral, mais que material, o que de nada serve quando o inimigo costumeiramente dá as costas para o Direito Internacional, para a ONU e para a opinião pública mundial.

O documentário da brasileira Julia Bacha, Budrus, nos dá uma visão panorâmica e privilegiada da primeira vila Palestina a efetivamente se valer da tática de não-violência para vencer o exército israelense. O que fica claro do filme é que a vila escolheu este caminho principalmente pela completa falta de opções. De população reduzida, desprotegida e frágil, não havia qualquer alternativa senão a de protestar pacificamente e esperar pelo apoio de ativistas israelenses e internacionais - o que aconteceu.

De resultado, conseguiram mudar o traçado do Muro da Vergonha, mas, no geral, foi uma vitória tímida frente à toda ocupação e assentamentos nos territórios palestinos. Enquanto tática, funcionou, mas a não-violência dificilmente traria os mesmos resultados que a dura resistência do Hezbollah contra Israel durante a ocupação do sul do Líbano e na guerra de 2006.
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Artigo completo no Diário Liberdade.
"Nire aitaren etxea
defendituko dut"
...
"Defenderei
a casa de meu pai"
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segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Coluna Semanal no Diário Liberdade - A Não-violência enquanto tática, uma visão histórica e o caso palestino – Parte 1

Quarta coluna para o portal anticapitalista Diário Liberdade, "Defenderei a casa do meu pai".

A Não-violência enquanto tática, uma visão histórica e o caso palestino – Parte 1

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Gandhi, Nelson Mandela. Bil'in, Budrus, Nil'in. É o que nos vê à mente quando falamos ou pensamos em Não-Violência na luta contra a opressão e o domínio colonial.
Gandhi e Mandela dispensam apresentações. Bil'in, Budrus, Nil'in são vilas na Cisjordânia, nas proximidades de Ramalá e símbolos da luta contra o Sionismo.
Mas até que ponto a não-violência tem efeitos práticos e, também, até que ponto os exemplos comumente citados são realmente válidos – ou efetivamente pacifistas?

Mandela e a base ideológica

Ao falar em Mandela, nos lembramos apenas do período em que este esteve na prisão por "atividades subversivas" - sem jamais nos perguntarmos quais atividades eram estas - e do período posterior, de abertura política, negociação e, graças ao filme "Invictus", da copa do mundo de Rugby nos anos 90. Mas voltemos às "atividades subversivas" por um momento. Mandela, ao contrário do que muitos pensam, nunca foi um pacifista, mas um pragmático que foi líder do braço armado do CNA (Congresso Nacional Africano), o Umkhonto we Sizwe, ou Lança da Nação, responsável por dezenas de mortes durante o regime do Apartheid.
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Artigo completo no Diário Liberdade.
"Nire aitaren etxea
defendituko dut"
...
"Defenderei
a casa de meu pai"


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segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Cabinda e Angola: Compreendendo as FLEC

Analisando o caso dos jogadores Togoleses vítimas de tiros e de uma tentativa de massacre na região de Cabinda - pertencente à Angola - por guerrilheiros das FLEC a resposta da mídia e da blogosfera é uníssona: Injustificável.

Bem, por mais que eu concorde, não deixo de tentar entender o outro lado.
Cabinda é uma esquisitice geográfica própria da África. Um pontinho de terra pouco maior do que o nosso Distrito Federal, separado fisicamente de Angola. Fica encravado, na verdade, entre dois países chamados Congo. A própria Cabinda já foi chamada de Congo português, e foi uma colônia separada de Portugal. Em 1975, quando os angolanos se declararam independentes, a pequena região foi anexada ao novo país. Nenhuma consulta foi feita a seus habitantes, muitos dos quais consideram que passaram sem escalas de um colonialismo para outro. Daí o ressentimento.
As FLEC lutam desde os anos 70 pela independência de Cabinda do Estado de Angola. Lutaram contra os Portugueses com a mesma ferocidade e como resultado apenas foram engolfados por outro Estado, que também consideram colonizador. Some a isto 30 anos de luta, de massacres, de repressão - cerca de 1/3 dos Cabindenses vivem no exílio - e você terá por resultado um ódio à flor da pele e uma resposta armada violenta.

Não nos esqueçamos que a questão não é meramente territorial e de orgulho - o que por si só é razão para guerras inúmeras -, mas também pelo fato de Cabinda ser responsável por até 80% do petróleo Angolano.

Vale também lembrar que, diferentemente do resto de Angola e até mesmo da maior parte da África, Cabinda possui uma notável homogeneidade étnico-linguística, o que não só facilita a unidade regional como também dá subsídios e legitimidade à luta emancipatória.

O caso de Cabinda, em termos de repressão e resposta tem paralelos com o Curdistão, com o País Basco, com o Sri Lanka e o povo Tâmil.... Obviamente que uma coisa é a luta entre um grupo guerrilheiro - legítimo - e um exército repressor e invasor, e outra muito diferente é o ataque contra um time de futebol estrangeiro que nada tem a ver com o conflito - nunca soube sequer do Togo, enquanto nação, ter se envolvido de qualquer maneira do conflito, o que pelo menos abriria uma maior brecha ao entendimento da ação.
"Dois meses antes, escrevemos a Issa Hayatou [ presidente da CAF] para avisá-lo que estávamos em guerra. Ele não quis levar nossas advertências a sério", acusou.
"Os ataques vão continuar, porque o país está em guerra e porque Hayatou é teimoso e decidiu manter os jogos em Cabinda", afirmou. "As armas vão continuar falando".
Mas, sejamos francos, é possível analisar que, no entendimento dos guerrilheiros, Angola não tinha o direito de convidar qualquer seleção para jogar em território disputado, não tinha o direito ou a legitimidade de impor uma Copa da África - mesmo que alguns poucos jogos - ao território que pertence à guerrilha e não à Angola e o fato de uma seleção estrangeira - no caso a do Togo - ter aceitado jogar referendando a reivindicação de Angola pelo território em detrimento dos Cabindenses, os tornava alvos legítimos ou, pelo menos, baixas aceitáveis.
FOLHA - Por que a seleção de futebol do Togo foi atacada pelas Flec?
RODRIGUES MINGAS -
O nosso território está em guerra. Dois meses antes desse torneio mandamos carta ao presidente da Confederação Africana de Futebol para informá-lo disso. Deixamos claro a ele que Cabinda não é parte de Angola.
FOLHA - Sim, mas o que Togo tem a ver com essa questão?
MINGAS -
O ataque não foi contra a equipe do Togo. Nós não temos nada contra eles. Nós estamos em guerra contra Angola, que ocupa ilegalmente nosso território. Ordenamos atacar as forças angolanas, e a equipe do Togo, por azar, foi atingida por nossa tropa.
FOLHA - Vocês sabiam que a seleção do Togo estava passando no local naquele momento?
MINGAS -
Não. Atrás dos primeiros carros com as tropas angolanas havia outros com mais tropas. No meio, estava o ônibus da equipe do Togo. É uma coisa que lamentamos.
Esta é uma linha de pensamento que, mesmo se a correta, não legitima o ataque à civis desarmados e inocentes.

A idéia também aventada de que o alvo eram os soldados das forças de segurança de Angola protegendo o ônibus também não soam bem. Vários minutos de incessante tiroteio diretamente contra o ônibus da delegação - dificilmente os guerrilheiros eram ignorantes sobre quem era transportado - são ato injustificável e que denunciam a tentativa de realizar um show, de aparecer na mídia.
"Alega-se ataque à escolta militar da delegação, não à comitiva do Togo", ressalta o jornalista da Agência Lusa. Para ficar mais claro: rebeldes consideram a região zona de guerra. O governo de Angola, apesar disso, a insere como uma das sedes do torneio, o que de certa forma reforça a ideia de que Cabinda pertence à ex-colônia portuguesa.

Assim, ignora os riscos que isso poderia levar às delegações, como ocorreu com Emmanuel Adebayor, Assimiou Touré, Moustapha Salifou e seus companheiros, acuados num ônibus durante quase meia hora de tiroteio. Morreu o motorista e dois atletas foram feridos.
Na verdade, é exatamente este tipo de ataque inconsequente que acaba por destruir as simpatias que existem entre o povo - e mesmo estrangeiros - por uma luta legítima e por um grupo legítimo. É um desserviço tolo e burro à luta.

Tiro no pé puro e simples.

Mas uma certeza fica, se forem fiéis às suas palavras, os guerrilheiros irão continuar os ataques, o que, a esta altura, faz sentido. Angola insiste em usar o território de Cabinda - em disputa, perigoso - como sede de uma copa da África. O mínimo que se espera é que os donos que se declaram legítimos se recusem a aceitar esta imposição.

PS. Vale lembrar que, quando falo em FLEC na questão dos ataques, me refiro ao racha da FLEC original, a FLEC/PM (Posição Militar), grupo remanescente da luta armada que se recusou a assinar o tratado de paz com Angola e acusam a FLEC majoritária de traição.
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sexta-feira, 2 de outubro de 2009

África, aquela inútil!


O título é provocativo, e não concordo com ele. Mas infelizmente o PIG e a maior parte da dita opinião pública, apóiam veementemente as premissas de tal declaração, a África é inútil... Ou ao menos não merece nossa atenção.

O título vem da leitura dos acontecimentos recentes na Guiné, onde centenas de manifestantes foram assassinados a sangue-frio pelo exército local em um estádio. O número chega aos 157 mortos e 1,2 mil feridos de um total de 50 mil que estavam presentes ao protesto no estádio da capital, Konakry.

O país é governado por uma junta militar, passou anos sob ditadura e, como a maior parte da África, é quase invisível, um país de contrastes, pobreza e conflitos.

Após o massacre a ONU pediu moderação - típico- e nada mais foi ou será feito.


Tudo bem que crises humanitárias no Sri Lanka, com a derrocada dos Tigres Tâmil, não são manchetes no Brasil, nem as crises costumeiras na Ásia, mas a África é emblemática. Quem se importa com ela?

O Tsunami recente no pacífico virou manchete, afinal, os povos da região são "Civilizados", estáveis e, no fim das contas,a tingiu a Samoa Americana, dos nossos amigos estadunidenses. É relevante.

Já o continente negro, onde a maior parte dos regimes são ditatoriais ou tem um verniz de democracia mais fino que o de uma parede de papel, os jornais viram a cara, não existem correspondentes, não existe cobertura séria, pouco se sabe ou se fala.

Aparentemente os jornais - e a maior parte da "opinião pública" enxergam a África como uma coisa só, um continente-país que, salvo a África do Sul e os Estados Árabes, pouco se diferenciam. Se é que existem diferenças visíveis! São ditaduras e proto-ditaduras, áreas de genocídio e irrelevantes.

Não que, convenhamos, a análise de que a região seja povoada por ditaduras e regimes assassinos seja falso, a questão principal reside no considerar tudo igual e virar os olhos e o sensato, buscar conhecer, analisar e, se possível, intervir positivamente.

Mesmo na região de maioria Árabe e Bérbere (o norte) são raros os que conhecem o conflito dos Bérberes no Níger, Mauritânia e países vizinhos (citar "Cabília" então, na Argélia, nem pensar!), ou a situação absurda de opressão do povo Saraúi no Saara Ocidental (Marrocos nada mais que genocida).

Darfur é uma exceção, um genocídio em larga escala onde a China tem ampla participação, ma ao mesmo tempo, poucos sabem do conflito do Sudão com o Chade.

Na África Negra propriamente dita, fora Ruanda e seu notório genocídio ou algum informe sobre o Congo ou sobre a situação do Zimbábwe (notem que apenas catástrofes saem da África em formato de notícia), raros são os que sabem diferenciar o Kenya da Suazilândia. Na verdade dificilmente sabem que o segundo existe sem olhar na wikipedia.

Enfim, a cobertura fraca - ou total falta até - sobre o que acontece na periferia da periferia não surpreende, apenas revolta. A África é o continente abandonado, sai nos noticiários apenas pela fome, miséria e conflitos, mas mesmo assim, se de grandes proporções, se envolvendo potências de alguma forma ou em genocídios.

De outra forma passa icógnita, esquecida.
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sexta-feira, 3 de abril de 2009

Momento piada...

"Violência em Guiné-Bissau preocupa comunidade internacional"


Sem querer desmerecer a importância do país (?) mas, convenhamos, ao ler essa notícia só penso em chefes de Estado procurando em seus mapas onde raios fica Guiné-Bissau!

É o típico país-propaganda, é irrelevante regionalmente e você pode soltar bravatas à vontade, dizer que vai reconstruir, vai ajudar e etc e ficar parecendo bonzinho na foto.

O Brasil vai "colaborar financeiramente" com o país. Louvável! Seria bom se o Brasil também colaborasse - e nem precisava investir nada - com o fim do conflito em Darfur, não votando contra o envio de observador independente, ou poderia votar contra a Coréia do Norte ou contra o Congo, como eu já expliquei aqui no blog antes! Mas, oras, são países relevantes e centros de atenção mundial!

O Brasil já anunciou que pretende colaborar financeiramente e também enviará missão de cooperação militar para áreas de treinamento das Forças Armadas e elaboração de políticas para o setor – no dia 21 deste mês, o Brasil participará de reunião da CPLP sobre a reforma das Forças Armadas da Guiné-Bissau. Em outubro, a ONU aprovou financiamento de US$ 5,6 milhões para a reabilitação de quartéis das forças armadas, formação e criação de emprego para jovens e reabilitação de quatro estabelecimentos prisionais – ações previstas no Plano Estratégico de Consolidação da Paz para a Guiné-Bissau.
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