O artigo ainda analisa o efeito que teve, sobre o nacionalismo catalão, a vitória da seleção espanhola na Copa do Mundo, que contava com uma forte presença de jogadores de nacionalidade catalã e também do Barcelona.
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Nós decidimos, somos uma nação
Nem mesmo o título mundial conquistado pela Espanha sufocou o desejo de independência da Catalunha
Por Raphael Tsavkko Garcia[25 de agosto de 2010 - 20h10]Sob o lema de "Nosaltres Decidim, Som Una Nació" (Nós decidimos, somos uma nação), 1,5 milhão de pessoas se reuniram em um sábado, dia 10 de julho, no centro de Barcelona, um dia antes de a Espanha jogar e vencer a final da Copa do Mundo. Em uma cidade de pouco mais de 1,6 milhão de habitantes, o tamanho da marcha dava o recado. O objetivo era deixar clara a aspiração à independência da Catalunha, que hoje permanece como uma simples região do país.
Milhares de senyeras (bandeira bicolor catalã) e de mãos de cartolina com as inscrições “Adèu Espanya” e “Jo no acato” deram o tom da marcha encabeçada por uma senyera de 250 metros quadrados. No total, mais de 1400 organizações, entre partidos, sindicatos, associações culturais e coletivas convocaram e participaram da manifestação que foi a maior já realizada em toda a história catalã. Ausentes, apenas o PP e partidos "españolistas" minoritários sem participação no Parlamento local.
A razão para tal protesto – que levou outras 40 mil pessoas à San Sebastian-Donostia, no País Basco, em solidariedade e sob o lema “Nazio Gara, Autodeterminazioa” – foi a mutilação do Estatut, a Constituição da Catalunha, feita pelo Tribunal Constitucional espanhol. Em jogo, a preferência pelo catalão como idioma oficial de ensino e o reconhecimento da nação catalã frente à espanhola, dentre outras questões como as fiscais e relacionadas aos impostos, aeroportos e imigração.
O caminho da independência e a dependência espanhola
A Catalunha possui uma longa e antiga história de luta por reconhecimento e independência, perdida em 11 de setembro de 1714 com a absorção do Reino de Aragão pelo Reino de Castela. Para completar este quadro, sua população foi fortemente reprimida por Francisco Franco (1939-1975) enquanto tentava manter vivas suas tradições, cultura e língua sob um regime brutal que buscava de todas as formas neutralizá-los.
Foi através da luta eminentemente política – entre 1979 e 1995 o pequeno grupo Terra Lliure (TLL, Terra Livre) adotou as táticas da ETA, sem obter, porém, grande efeito ou aceitação popular – que os mais diversos partidos e organizações, sob forte pressão da população, chegaram até a gigantesca manifestação do dia 10 de julho.
O catalão é a língua falada pela quase totalidade da população, mesmo pelos imigrantes, e a mídia local o utiliza extensivamente – em alguns casos exclusivamente – como língua veicular. O governo e o parlamento utilizam quase que só o catalão para seus trabalhos, as festas populares são sempre acompanhadas por multidões entusiasmadas e, não menos importante, o FC Barcelona figura como símbolo máximo da “catalanidade” e divulga estes ideais pelo mundo.
Com apenas 7 milhões de habitantes em uma Espanha de 47 milhões, a Catalunha representa 25% do PIB, sendo, junto com o País Basco, a região mais rica e próspera do país; logo, uma região que a Espanha não gostaria de ver perdida. A iniciativa de propor um novo Estatut partiu do próprio PSOE, que buscava acalmar os ânimos mais exaltados, insatisfeitos com a falta de autonomia local frente ao governo espanhol. Uma tentativa final para manter “segura” a rica e importante região.
O Estatut e o Tribunal Constitucional
O Estatut foi aprovado pelo parlamento local em 2006 e então ratificado por referendo pela população local e mesmo pelo parlamento espanhol, garantindo à Catalunha uma maior autonomia em relação à Espanha. Para alguns, autonomia demais.
Reza o estatuto aprovado que a Catalunha é nação, enquanto a Espanha e seu tribunal apenas reconhecem que esta é uma “espécie do gênero cidadania espanhola”; sendo que “o povo espanhol é o único titular da soberania nacional” cuja Constituição “não reconhece outra, senão a nação espanhola” e insiste na “indissolubilidade da nação espanhola”.
Oriol Junqueras, eurodeputado pela Esquerra Republicana de Catalunya (ERC), desabafou em um artigo publicado em seu blog, afirmando que o Estatut – e a marcha – são o resultado de anos de trabalho incansável do independentismo catalão, da militância dos mais diversos tipos de pessoas, do esforço de se melhorar a sociedade, de se consumir produtos locais, de se criar empresas grandes ou pequenas nos momentos mais difíceis, de saber esperar apesar de querer logo alcançar seu objetivo, como expresso na famosa música Somniem (“Sonhar”), de Lluis Llach.
O diário nacionalista basco Gara (“Nós”), em editorial, alertava para a manobra conservadora do Estado para esvaziar de conteúdo o texto do Estatut, discutido e votado pela população. Em 28 de junho deste ano o Tribunal Constitucional revogou diversos pontos do Estatut, em um documento de mais de 800 páginas que, dentre outros, “rebaixava” a identidade deste povo extremamente orgulhoso de sua herança cultural.
O processo para a revisão do Estatut foi proposto pelo Partido Popular, único dos partidos com representação no Parlament a discordar de seus termos e propor a revisão de 113 de seus 221 artigos e que, no fim, acabou por ver sua vontade atendida. Como nos tempos de Franco, os “populares” sentem-se como se dessem todas as cartas e o Judiciário não discorda. Segundo o PP, a autonomia catalã põe em perigo a unidade espanhola.
A sentença confirma que a Espanha continuará a negar a condição de “nação” do povo catalão e não reconhecerá os direitos históricos do povo e tampouco modificará a atual situação de inferioridade formal do catalão frente ao espanhol.
“La Roja”
Em meio à febre da Copa, a manifestação, em que pese seu tamanho, foi praticamente ignorada pelos veículos de comunicação no Brasil. Apenas algumas notas esparsas em jornais online davam uma pequena amostra do que acontecia por lá. Por se dar na véspera da grande final – ironia do destino, com a participação da própria Espanha – a Catalunha foi deixada de lado.
Porém, a escolha do dia não poderia ser mais simbólica. A seleção espanhola que entraria em campo no dia seguinte para se tornar campeã era um belo exemplo da diversidade de povos e nações que formam o Estado Espanhol: nada menos que sete jogadores da seleção, praticamente a base titular, eram catalães (sem contar os oito jogadores do Barcelona, dos quais apenas dois não eram da região). Outros três jogadores eram bascos, um – e artilheiro do time, Villa – era asturiano. Ainda havia canários e valencianos. Dentre os 23 jogadores convocados, apenas nove eram, efetivamente, espanhóis.
O zagueiro Gerard Piqué, constantemente mostrado pelas redes de TV como um incansável herói que sangrou – literalmente – pela Espanha é, na verdade, catalão e jogador do Barcelona. Um dos heróis da classificação da Espanha para a final, Carles Puyol, empunhou orgulhosamente, junto com Xavi, a senyera assim que foi dado o apito final da última partida. Até o fim, orgulhosos catalães que, por contingências da vida, jogavam pela Espanha.
Os jornais espanhóis tentavam, em vão, mostrar a comemoração em Barcelona, em Bilbao, em Donostia... Mas tudo o que encontravam eram pequenos grupos esparsos se comparados com a multidão reunida em Madri. No geral, tanto a mídia nacionalista quanto a maior parte da população se mostravam alheias ou, em muitos casos, torcendo contra “La Roja”. Casos de violência contra quem usava uma camisa da Espanha não foram raros nas regiões separatistas.
Na Catalunha os sentimentos eram ainda mais confusos: Muitos torciam pelos catalães da seleção, mas dificilmente nutriam qualquer simpatia pela seleção em si. Comemoravam-se os gols dos catalães, as exibições dos “barcelonistas”, mas não os resultados da Espanha. Já no País Basco, uma pesquisa do jornal Deia (“Chamada”) apurou que 70% da população torceria contra a Espanha. É um valioso indicador do ânimo das populações com forte sentimento separatista.
Como me contou uma amiga basca, esta Copa serviu não para criar temores aos nacionalistas – como tentaram fazer crer alguns jornais espanhóis –, mas apenas para tirar do armário alguns españolistas que se mantinham escondidos. Agora tudo está às claras, a Catalunha disse o que quer e a Espanha, passada a comemoração, terá de acordar para a dura realidade de uma economia em frangalhos e de uma nação demonstrando com força todo o seu descontentamento e buscando deixar seu passado de dominação para trás.
A tentativa midiática de forjar uma identidade espanhola baseada numa seleção de futebol, como se vê, falhou de forma retumbante.