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Um olhar sobre o conflito basco
O País Basco (Euskal Herria), região histórica encravada no extremo norte da Espanha e com prolongamentos até o sudoeste da França, continua a ser sacudido por um conflito amplo e antigo. Após repetidos casos de repressão, prisões arbitrárias e ilegalizações de partidos políticos, a Esquerda Nacionalista se prontificou, mais uma vez, a abrir um processo de negociação sem exclusões, propiciando o debate franco e aberto entre todas as forças políticas e sociais.
Poucos, no Brasil, têm o real conhecimento do conflito basco. O que se lê aqui se resume a pequenas notas em veículos online, normalmente acusando a ETA (Euskadi Ta Askatasuna ou Pátria Basca e Liberdade) de um ou outro ataque. Sobre a repressão espanhola, os casos de tortura e de censura contra os nacionalistas bascos (conhecidos como abertzales), nenhuma palavra ou citação, seja na grande mídia ou na mídia dita alternativa.
Breve história de resistência Por mais de um século, o povo basco luta por sua independência e o movimento nacionalista tem se organizado e sido duramente combatido – seja pela violência, por fraudes ou por leis criadas especificamente para impedir sua ação – enquanto tenta angariar apoio para sua luta.
Fato comum na Espanha de hoje são as prisões arbitrárias – e em muitos casos seguidas de tortura – de militantes nacionalistas acusados de pertencer à ETA. O grupo virou um bode expiatório em um processo irreversível e absurdo, no qual "tudo é ETA".
A organização, criada tanto para lutar pela independência quanto contra Franco, de grupo admirado pela militância passou a figurar nas listas de terrorismo internacional como responsável por mais de 800 assassinatos políticos, e sofre um processo de revisionismo que visa acabar com sua história.
Durante o regime de Franco (1939-1976), as torturas, execuções e prisões eram lugar-comum. Com a chegada da democracia acreditava-se em um novo tempo, um processo de debate democrático. Engano. O período posterior à ditadura, conhecido como Guerra Suja, patrocinado e financiado pelo governo do premiê socialista Felipe González (1982-1996), deixou dezenas de mortos em ações de grupos de extrema-direita cujo objetivo era o assassinato político de membros da ETA, de partidos nacionalistas bascos e da militância Abertzale. A repressão financiada pelo Estado, na Espanha, permanece inalterada até os dias de hoje.
Ilegalizações e fechamentos Desde 2003, a repressão tem seguido um novo caminho, o da ilegalização de partidos políticos. Sob a acusação de pertencer ou de serem controladas pela ETA, diversas formações políticas de esquerda e nacionalistas foram ilegalizadas: Batasuna (primeiro a ser ilegalizado, em 2003), Aukera Guztiak, ANV-EAE (partido histórico fundado nos anos 30), PCTV-EHAK, D3M, Askatasuna...
Hoje, o grupo que se denomina "Izquierda Abertzale", ou "Esquerda Nacionalista" é proibido, sob todas as formas, de votar e eleger representantes. Isto representa cerca de 20% da população basca que é marginalizada do processo democrático, em muitos casos, por meio de processos falhos e cheios de incorreções e confusões.
No campo da liberdade de expressão, a Espanha não faz melhor. O diário Egin (“Fazer”) e o Egunkaria (literalmente “Diário”) foram fechados em 1998 e 2003, respectivamente, sob a acusação de fazer apologia ao terrorismo (ETA) e de serem controlados por esta organização. Em abril deste ano a Justiça reconheceu seu erro sem, porém, indenizar as vítimas tanto do fechamento quanto das posteriores prisões e torturas praticadas pelas forças de segurança espanholas, e sem um pedido de desculpas ou indenizações. Agora, discute-se a censura como instrumento de Estado para calar a voz nacionalista.
Grandes manifestações Encontram-se presos, hoje 762 bascos detidos por suas atividades políticas em cadeias espanholas – política criticada por organismos de direitos humanos. Este número só é superado pelo de pessoas presas até 1969 em pleno Estado de Exceção decretado por Franco: 860.
No fim de 2009, duas grandes marchas demonstraram o grau de insatisfação da população com as constantes prisões e repressão e reuniram, em 17 de outubro (Donostia-San Sebastian) e em 28 de novembro (Bilbao), mais de 45 mil manifestantes cada uma, e unificaram os diversos partidos nacionalistas ainda legais, como EA, Abertzaleen Batasuna, Aralar e os membros do ilegalizado Batasuna.
Os protestos foram organizados em repúdio à prisão simultânea de 34 jovens militantes do grupo estudantil Segi, que foram detidos e mantidos sob estado de incomunicação (instrumento repetidas vezes condenado pela Anistia Internacional e pelos órgãos de Direitos Humanos da ONU) na maior operação policial desde o fim da ditadura de Franco e em solidariedade aos líderes do Batasuna, presos sob acusações de “enaltecimento ao terrorismo” e participação na luta armada.
A discussão atual Atualmente discutem-se os efeitos do documento "Zutik Euskal Herria" ("Em Pé País Basco”, lançado em fevereiro pelos militantes do ilegalizado Batasuna e que prega um processo amplo e continuado de negociações, acumulação de forças, e buscando uma solução para o conflito.
Em apoio ao processo de paz proposto nas páginas do Zutik Euskal Herria e tomando a frente no processo de negociação, a rede Lokarri convidou o sul-africano Brian Currin (mediador no desarmamento do IRA e no fim do apartheid de seu país) para apoiar e indicar caminhos para a resolução do conflito e, através da “Declaração de Bruxelas”, conseguiu o apoio de cerca de 20 líderes internacionais e especialistas em resolução de conflitos – dentre eles Nelson Mandela, Frederik de Klerk, David Hume e Desmond Tutu, todos agraciados com o Nobel da Paz – para pressionar por um processo de negociação com base nos chamados Princípios Mitchell.
Diversas declarações e acordos foram feitos desde o fim do regime de Franco, como o Pacto de Ajuria Enea (1988) e de Estella ou Lizarra (1998), sem que nenhum deles tivesse obtido o sucesso esperado. O Estado já buscou negociar diversas vezes com a ETA e vice-versa, e as negociações sempre emperram num mesmo ponto: a ETA só aceita dialogar quando a opção da independência for uma via real. O Estado se nega a discutir termos sem o fim completo da violência. Neste jogo continuam a tortura, a intimidação e as prisões arbitrárias, ao mesmo tempo em que prossegue a violência da ETA com seus assassinatos seletivos e bombas que também vitimam inocentes.
Apesar do otimismo atual com os recentes pactos e discussões, vê-se que ainda falta muito chão a ser percorrido no caminho da paz e do fim do conflito basco. É preciso acabar com a tortura e as ilegalizações para que, então, a ETA se esvazie de sentido.
Essa matéria é parte integrante da edição impressa da Fórum 86. Nas bancas.