sábado, 26 de março de 2011

Compartilhamento livre de cultura e os entraves da indústria

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Soa como clichê afirmar que o século XXI, este agora em que vivemos, é o século — ou talvez a era — do compartilhamento. Com a internet e seu crescimento temos milhões de pessoas compartilhando não só filmes e música, mas também ideias. Estamos diante da total subversão do modelo tradicional de capitalismo de consumo ou mercadológico, pois agora não compartilhamos um CD, um DVD, mas apenas as ondas sonoras, o mp3, ou as imagens de um filme. Não há necessidade mais do meio físico, do intermediário.
Compartilhamos ideias, criamos de forma colaborativa. Não que não fosse assim antes, mas, digamos, escancaramos a situação.

Quando você produz uma música, sem dúvida, está se apropriando de criações anteriores. São as influências. Ninguém produz algo do nada, todos somos influenciados pelo meio, por nosso entorno, por nossos gostos, história, mas com a internet levamos isto a um novo patamar. Não apenas nos inspiramos, mas muitas vezes vamos até a fonte de inspiração criar colaborativamente.

O que antes era “inspiração”, hoje é colaboração, franca e direta. Mesmo empresas vão à rede buscar dentre seus consumidores ideias para nomes de produtos, opiniões e mesmo ideias mais específicas. A pesquisa de mercado não é mais um grupo de pessoas numa sala fechada, mas milhões de pessoas interconectadas opinando, conversando e criando.

Uns poderiam dizer que não muda muita coisa, que deveríamos pagar pela música e pelo filme, mesmo que não se use um suporte físico para que ocorram as trocas. Que nossas ideias continuam sendo nossas, desprezando todo o entorno. Mas onde está o erro?

A economia mundial capitalista é baseada na escassez ou na presumida escassez de um produto. Oras, se eu produzo 1000 CD’s, só posso vender 1000 CD’s, é muito simples. Se eu tenho um CD e te dou este CD, eu fico sem nenhum, então eu coloco um preço nesse bem material para que eu possa me desfazer dele e não sair no prejuízo. Isto é, de forma simples, a economia da escassez, ou seja, o modelo em que você produz bens finitos e cobra pelo privilégio de alguns terem acesso a estes bens.

A internet subverte este modelo histórico. Como? Passando por cima da escassez, ou melhor, eliminando a possibilidade de escassez de bens culturais. Esta é a palavra-chave aqui: “Bens culturais”, fruto do intelecto humano, da criatividade, da capacidade de produzir cultura.

Claro, a internet não elimina a escassez do trigo, do arroz, mas acaba com a possibilidade de um CD se esgotar, acabar nas lojas... Deixamos de ser reféns de gravadoras e editoras.

Quantas vezes — especialmente na faculdade — fomos obrigados a nos matar pra achar aquele livro clássico, editado em 1976, que está esgotado mesmo na editora e só tem duas cópias na biblioteca cujo preço da xérox é abusivo e 50 pessoas da tua turma querem copiar ao mesmo tempo? Ufa!

Com a internet um ser caridoso pode escanear e dar a oportunidade de dezenas, centenas e até milhares de pessoas terem acesso à obra sem precisar passar por todo esse drama e, acima de tudo, sem esperar pela — rara — boa vontade da editora de voltar a publicar aquele bendito livro.

Oras, sem a internet como você teria acesso àquele bootleg raríssimo da sua banda de folk uzbeque favorita? Na verdade, como você sequer conheceria essa banda sem a internet?

E ainda mais, na internet você pode ouvir a música, ter a musica no seu PC e passá-la adianta sem ter de abrir mão do MP3. Eu continuo a ter acesso ao bem, mesmo que o passe a você. É o máximo do compartilhamento de cultura, do enriquecimento irrestrito da comunidade.

Com a internet nós ao mesmo tempo eliminamos a escassez dos bens culturais como também os intermediários de má vontade, apenas interessados no lucro. Podemos ter uma relação muito maior de proximidade com nossos artistas e autores. Especificamente tratando de música, já há muito que artistas — exceto casos raros — tiram seu lucro de shows e não da venda de CD's, cujo lucro fica quase todo com intermediários e gravadoras.

Quem se prejudica com a internet não é o artista, que com o alcance da internet e a rede de fãs que cria, pode fazer shows em lugares muito mais distantes do que na época em que vivíamos na ditadura das gravadoras. Alguém vai chorar pelas gravadoras que cobram 40 reais por um CD que custa 10 centavos pra ser produzido e que mal repassa 10% do valor ao artista?

Quanto aos livros, e um pouco mais complicado, pois autores não fazem shows, mas da mesma forma que na música, é a indústria, a editora, que fica com a maior parte do lucro. Especialmente no caso de livros acadêmicos, o autor raramente recebe o suficiente pra comprar um café.

As propostas que existem hoje são pela liberação do uso de livros acadêmicos por estudantes, sem custos, ou com custos reduzidos ou compartilhados entre os interessados, para promover o acesso à cultura. São alternativas em discussão.

Mas, lembram-se que, no começo, eu falei que estamos na era do compartilhamento? Pois bem, estamos nós, cidadãos, mas o mesmo não vale para gravadoras, editoras... Estes ainda estão na época analógica. O que não quer dizer que estes mesmos empresários não brigassem até na era analógica: Chegaram a querer criminalizar a cópia em fitas k7 de músicas que tocavam nas rádios!

Outra ideia — de jerico - foi a de querer cobrar um imposto sobre a venda de fitas que seria revertido para as gravadoras — não para os artistas, que fique claro. Ha algum tempo retomaram a ideia querendo criar imposto para venda de CD/DVD virgem. Risível.

A indústria é incapaz de compreender os novos tempos. Ao invés de se preparar para o futuro, de buscar alternativas, tentam barrar a evolução, o progresso, impondo restrições, criminalizando o compartilhamento, mesmo que este seja faceta natural do ser humano, apenas ampliado pela internet.

O AI5Digital no Brasil (como ficou conhecida a Lei Azeredo, proposta pelo então senador e hoje deputado federal Eduardo Azeredo, que visava criminalizar o compartilhamento e restringir o acesso à internet, além de tornar provedores entidades de controle policial), o HADOPI na França e o ACTA em nível mundial são apenas exemplos de legislações criadas ou idealizadas com pesado lobby da indústria fonográfica e afins.

A internet em si não muda o que somos, mas tão só potencializa certas características. Se nos comunicamos no dia a dia, com a internet nos comunicamos melhor e para além. Com a internet retomamos o papel de criadores de produtores de cultura, pois deixamos de lado a necessidade de intermediários, de indústria. A cultura passa a ser livre.

Mas isto quer dizer que a indústria morrerá? Não. Ela apenas terá de se adequar à nova realidade, ao invés de lutar contra ela.

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Publicado originalmente no Jornal Opção, em 21/03/2011, e na Revista Bula, em 25/03/2011.
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