Soa como clichê afirmar que o século XXI, este agora em que vivemos, é o
século — ou talvez a era — do compartilhamento. Com a internet e seu
crescimento temos milhões de pessoas compartilhando não só filmes e
música, mas também ideias. Estamos diante da total subversão do modelo
tradicional de capitalismo de consumo ou mercadológico, pois agora não
compartilhamos um CD, um DVD, mas apenas as ondas sonoras, o mp3, ou as
imagens de um filme. Não há necessidade mais do meio físico, do
intermediário.
Compartilhamos ideias, criamos de forma colaborativa. Não que não fosse assim antes, mas, digamos, escancaramos a situação.
Quando você produz uma música, sem dúvida, está se apropriando de
criações anteriores. São as influências. Ninguém produz algo do nada,
todos somos influenciados pelo meio, por nosso entorno, por nossos
gostos, história, mas com a internet levamos isto a um novo patamar. Não
apenas nos inspiramos, mas muitas vezes vamos até a fonte de inspiração
criar colaborativamente.
O que antes era “inspiração”, hoje é colaboração, franca e direta.
Mesmo empresas vão à rede buscar dentre seus consumidores ideias para
nomes de produtos, opiniões e mesmo ideias mais específicas. A pesquisa
de mercado não é mais um grupo de pessoas numa sala fechada, mas milhões
de pessoas interconectadas opinando, conversando e criando.
Uns poderiam dizer que não muda muita coisa, que deveríamos pagar pela
música e pelo filme, mesmo que não se use um suporte físico para que
ocorram as trocas. Que nossas ideias continuam sendo nossas, desprezando
todo o entorno. Mas onde está o erro?
A economia mundial capitalista é baseada na escassez ou na presumida
escassez de um produto. Oras, se eu produzo 1000 CD’s, só posso vender
1000 CD’s, é muito simples. Se eu tenho um CD e te dou este CD, eu fico
sem nenhum, então eu coloco um preço nesse bem material para que eu
possa me desfazer dele e não sair no prejuízo. Isto é, de forma simples,
a economia da escassez, ou seja, o modelo em que você produz bens
finitos e cobra pelo privilégio de alguns terem acesso a estes bens.
A internet subverte este modelo histórico. Como? Passando por cima da
escassez, ou melhor, eliminando a possibilidade de escassez de bens
culturais. Esta é a palavra-chave aqui: “Bens culturais”, fruto do
intelecto humano, da criatividade, da capacidade de produzir cultura.
Claro, a internet não elimina a escassez do trigo, do arroz, mas acaba
com a possibilidade de um CD se esgotar, acabar nas lojas... Deixamos de
ser reféns de gravadoras e editoras.
Quantas vezes — especialmente na faculdade — fomos obrigados a nos
matar pra achar aquele livro clássico, editado em 1976, que está
esgotado mesmo na editora e só tem duas cópias na biblioteca cujo preço
da xérox é abusivo e 50 pessoas da tua turma querem copiar ao mesmo
tempo? Ufa!
Com a internet um ser caridoso pode escanear e dar a oportunidade de
dezenas, centenas e até milhares de pessoas terem acesso à obra sem
precisar passar por todo esse drama e, acima de tudo, sem esperar pela —
rara — boa vontade da editora de voltar a publicar aquele bendito
livro.
Oras, sem a internet como você teria acesso àquele bootleg raríssimo da
sua banda de folk uzbeque favorita? Na verdade, como você sequer
conheceria essa banda sem a internet?
E ainda mais, na internet você pode ouvir a música, ter a musica no seu
PC e passá-la adianta sem ter de abrir mão do MP3. Eu continuo a ter
acesso ao bem, mesmo que o passe a você. É o máximo do compartilhamento
de cultura, do enriquecimento irrestrito da comunidade.
Com a internet nós ao mesmo tempo eliminamos a escassez dos bens
culturais como também os intermediários de má vontade, apenas
interessados no lucro. Podemos ter uma relação muito maior de
proximidade com nossos artistas e autores. Especificamente tratando de
música, já há muito que artistas — exceto casos raros — tiram seu lucro
de shows e não da venda de CD's, cujo lucro fica quase todo com
intermediários e gravadoras.
Quem se prejudica com a internet não é o artista, que com o alcance da
internet e a rede de fãs que cria, pode fazer shows em lugares muito
mais distantes do que na época em que vivíamos na ditadura das
gravadoras. Alguém vai chorar pelas gravadoras que cobram 40 reais por
um CD que custa 10 centavos pra ser produzido e que mal repassa 10% do
valor ao artista?
Quanto aos livros, e um pouco mais complicado, pois autores não fazem
shows, mas da mesma forma que na música, é a indústria, a editora, que
fica com a maior parte do lucro. Especialmente no caso de livros
acadêmicos, o autor raramente recebe o suficiente pra comprar um café.
As propostas que existem hoje são pela liberação do uso de livros
acadêmicos por estudantes, sem custos, ou com custos reduzidos ou
compartilhados entre os interessados, para promover o acesso à cultura.
São alternativas em discussão.
Mas, lembram-se que, no começo, eu falei que estamos na era do
compartilhamento? Pois bem, estamos nós, cidadãos, mas o mesmo não vale
para gravadoras, editoras... Estes ainda estão na época analógica. O que
não quer dizer que estes mesmos empresários não brigassem até na era
analógica: Chegaram a querer criminalizar a cópia em fitas k7 de músicas
que tocavam nas rádios!
Outra ideia — de jerico - foi a de querer cobrar um imposto sobre a
venda de fitas que seria revertido para as gravadoras — não para os
artistas, que fique claro. Ha algum tempo retomaram a ideia querendo
criar imposto para venda de CD/DVD virgem. Risível.
A indústria é incapaz de compreender os novos tempos. Ao invés de se
preparar para o futuro, de buscar alternativas, tentam barrar a
evolução, o progresso, impondo restrições, criminalizando o
compartilhamento, mesmo que este seja faceta natural do ser humano,
apenas ampliado pela internet.
O AI5Digital no Brasil (como ficou conhecida a Lei Azeredo, proposta
pelo então senador e hoje deputado federal Eduardo Azeredo, que visava
criminalizar o compartilhamento e restringir o acesso à internet, além
de tornar provedores entidades de controle policial), o HADOPI na França
e o ACTA em nível mundial são apenas exemplos de legislações criadas ou
idealizadas com pesado lobby da indústria fonográfica e afins.
A internet em si não muda o que somos, mas tão só potencializa certas
características. Se nos comunicamos no dia a dia, com a internet nos
comunicamos melhor e para além. Com a internet retomamos o papel de
criadores de produtores de cultura, pois deixamos de lado a necessidade
de intermediários, de indústria. A cultura passa a ser livre.
Mas isto quer dizer que a indústria morrerá? Não. Ela apenas terá de se adequar à nova realidade, ao invés de lutar contra ela.
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Publicado originalmente no Jornal Opção, em 21/03/2011, e na Revista Bula, em 25/03/2011.
Blog de comentários sobre política, relações internacionais, direitos humanos, nacionalismo basco e divagações em geral... Nome descaradamente baseado no The Angry Arab
sábado, 26 de março de 2011
Compartilhamento livre de cultura e os entraves da indústria
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Compartilhamento livre de cultura e os entraves da indústria
2011-03-26T13:30:00-03:00
Raphael Tsavkko Garcia
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