segunda-feira, 30 de maio de 2011

Nacionalismo e Emancipação Nacional: O caso das nações oprimidas do Estado Espanhol

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O texto a seguir nasce de um debate* entre Lucas Morais (@Luckaz), Antônio Luiz Costa (@ALuizCosta) e Raphael Tsavkko (@Tsavkko) sobre os movimentos nacionalistas Basco, Galego e Catalão e sua relação com o Estado espanhol. Durante o debate, várias questões surgiram, como a relevância da luta pela emancipação nacional, a força dos movimentos nacionalistas, sua vitalidade e mesmo sua validade nos dias atuais. Questões que pretendemos – não exaustivamente – responder a seguir, buscando contextualizar a luta pela emancipação nacional enquanto ato de resistência dos trabalhadores além de mero reflexo dos interesses da burguesia.

Sobre a história dos nacionalismo catalão, basco e galego

I

Bascos, catalães e galegos possuem longa história de independência. Ainda no século XVII, a Catalunha experimentou sua primeira e breve experiência republicana, repetida novamente em fins do século XIX e novamente nos anos 30 do século XX. Ainda hoje é lembrado o Dia da Catalunha (Diada Nacional de Catalunya) com protestos pela nação,  rememorando o 11 de setembro de 1714, ou a conquista final do país pelo Reino de Castela, e a cada ano renova-se a esperança pelo dia em que a Catalunha será novamente independente. Os Bascos, por sua vez, vieram a ser finalmente conquistados apenas no fim do século XIX, antes disto passaram séculos sob o regime de Foros, ou seja, possuíam total liberdade interna, entregando apenas a sua defesa externa ao Reino de Castela. Euskal Herria (País Basco) é uma nação independente desde os primeiros registros escritos sobre seu povo e sua língua milenar. Não foram conquistados pelos romanos ou por qualquer outra nação ou império que passou pela região. Resistiram a todas as investidas e, ainda hoje, mantém a luta por sua independência. Já os galegos formaram um poderoso reino durante a idade média, o Reino Suevo de Gallaecia, o primeiro reino independente de toda Europa, estabelecido como tal no ano 410, e do qual fazia parte o condado portucalense, que no século XII originou o Reino de Portugal e fez do galego sua língua nacional, sob o nome de português. Daí parte unidade linguística da faixa ocidental da Península Ibérica (Galiza e Portugal) e a longa luta do povo galego, que durante séculos alternou períodos de soberania com outros de submetimento a Castela, até o descabeçamento total da sua classe dirigente, o que explica a falta de um projeto nacionalista burguês na Galiza atual.

O Reino da Galiza subsistiu até 1833 e, mesmo dominados pelo então Reino de Castela, o povo galego manteve sempre vivas sua língua e cultura. O movimento nacionalista galego parte assim do século XIX, tendo um caráter eminentemente progressista e republicano.

Os demais “nacionalismos periféricos” e a “espanholização” forçada

II

Há outras regiões da Península Ibérica que já foram nações ou são reivindicadas como sendo parte das nações referidas, como Valência e Ilhas Baleares. Ambos faziam parte do que historicamente se chama Países Catalães, que são territórios de língua catalã. Entretanto, os níveis de espanholização imposto a estes povos são diversos. É óbvio que a Catalunha é o território com maior consciência nacional e, em função disto, maior independentismo. Entretanto, nas Ilhas Baleares há menos consciência nacional que na Catalunha, e menos ainda em Valência. Neste último, os espanhóis conseguiram sobretudo introduzir um sentimento localista anticatalão, ao ponto da burguesia de Valência defender que lá se fala uma língua diferente chamada “valenciano”. Aqui, sim, ocorre a estratégia do “divide et impera”, isto é, dividir os povos para imperar sobre eles. Do mesmo modo o Estado espanhol afirma que o galego não tem nada a ver com o português, quando hoje sabemos que a nossa língua, o português, nasceu realmente na antiga Gallaecia. Aragão e Astúrias historicamente foram nações, com línguas próprias que lutam para sobreviver, assim como Leão, cujo idioma sobrevive às duras pelas em um território dividido com Castela, logo, sem qualquer status especial ou possibilidade de ensino em escolas ou crescimento. Hoje, as línguas astur-leonesa e aragonesa estão em processo de desaparição, com poucos milhares de falantes e movimentos nacionalistas muito fracos. Isto se deve pela absorção realizada pelo Reino de Castela (base do projeto nacional espanhol), que, desde muito cedo, impôs a espanholização a estes povos.

Os tipos de nacionalismo e o desejo de liberdade

III

Não há somente um tipo de nacionalismo. Há nacionalismos expansionistas e nacionalismos defensivos. É claro que desde o Brasil ou Portugal é difícil compreender os conflitos de nacionalidades, dado que nestes países referidos não se vive tais conflitos e não há problemas no uso da própria língua, o que pode levar a crer que é sem sentido a defesa de direitos linguísticos na Catalunha, Galiza e País Basco por exemplo. Somente vivendo esta condição humilhante há a possibilidade de compreender as determinações sociais que fundam a resistência, isto é, ao sentir-se impotente perante as imposições do Estado espanhol, ao não poder escolarizar os filhos na língua própria, como ocorre na Galiza por exemplo, ou como quando o franquismo baniu e criminalizou as línguas basca, catalã e galega. O fim do franquismo deixou um legado nefasto em que o basco passou a ser falado por meros 40% da população, ainda que um forte movimento popular o fez ressurgir, alcançando hoje perto de 70% da população. Mas é pouco. Bascos, catalães e galegos querem ter o direito a ensinar seus filhos sem pedir permissão para o Estado espanhol para tal. Bascos, catalães e galegos querem ter o direito a votarem e serem eleitos, sem precisar pedir permissão a tribunais espanhóis. É comum confundir “nacionalismo” como uma manifestação de uma direita xenófoba e racista sem, porém, compreender as notáveis diferenças entre o nacionalismo movido pelo ódio ao outro e o nacionalismo que busca apenas garantir a (sobre)vivência cultural, econômica e a autodeterminação de um povo.

Imperialismo versus nacionalismo

IV

Naturalmente, há um fundo de verdade nas informações que Antonio Luiz coloca em debate, que o imperialismo sempre tenta se aproveitar de contradições nacionais em benefício próprio, o que é verdade. Entretanto, isto não anula a existência dos direitos de emancipação nacional. Durante décadas a esquerda de todo o mundo doou seu apoio e demonstrou solidariedade (quando não pegou em armas) para garantir os direitos das nações e povos oprimidos em seu direito à autodeterminação e a superação de seu status de colônia. A luta de bascos, catalães e galegos nada mais é que a continuidade das lutas por emancipação nacional e pela descolonização. Também é verdade que, por vezes, é a burguesia quem dirige ou tem dirigido esses processos independentistas, mas, novamente, isto não anula a existência de um povo sujeito de direitos.

O nacionalismo galego enquanto resposta dos trabalhadores

V

No caso galego, a burguesia renuncia à nacionalidade galega e conforma-se com os lucros que lhe correspondem por fazer parte do mercado espanhol, e, neste caso, é a esquerda somente que defende a liberdade nacional do povo da Galiza. Ora, não é por “separatismo” que se luta pela independência galega, e sim pela aspiração à liberdade e independência frente o Estado espanhol, para que, então, a Galiza possa se por em verdadeiro pé de igualdade na Península Ibérica, em relações baseadas na igualdade, e não na imposição, e, claro, no respeito às identidades nacionais. Esta soberania não tem como aspiração a exploração do homem pelo homem, nem expandir-se como os impérios históricos, mas sim um movimento defensivo antitético ao nacionalismo expansionista e imperialista do Estado espanhol. É interessante notar que o nacionalismo galego é mais fraco ou menos presente nas instituições que o basco e catalão, precisamente porque a burguesia renuncia maioritariamente à nacionalidade galega, o que não acontece nos casos basco e catalão, que também têm fortes partidos burgueses nacionalistas. Além disso, a repressão franquista foi especialmente brutal com a Galiza, que caiu logo sob o domínio dos fascistas e viu como toda uma geração de seus melhores filhos morriam assassinados ou tinham que fugir para salvar a vida. Só nos anos da guerra (1936-1939) estima-se que o número de vítimas mortais do fascismo espanhol na Galiza pode ser de 40 mil em apenas 3 anos (a ditadura militar argentina, estima-se que tenha matado mais de 30 mil), numa população inferior aos 2 milhões e meio na altura. Portanto, o nacionalismo galego tem seu caráter popular e de esquerda, com forte implantação sindical no movimento operário, e sua vontade de integração no espaço internacional lusófono, enquanto berço histórico da língua portuguesa.

A força relativa dos nacionalismos no Estado Espanhol

VI

Os critérios restritos aplicados à esquerda catalã e basca, baseado no sucesso eleitoral, não refletem a realidade destas nações. Ora, sabe-se qual a porcentagem da esquerda anticapitalista em Espanha? Afinal, ali quase inexiste expressões revolucionárias da esquerda. O Partido Comunista Espanhol, como tal, não tem sequer um deputado no parlamento espanhol nestes momentos. Proporcionalmente, o pensamento político de esquerda revolucionária tem maior porcentagem na Catalunha, enquanto Galiza e Euskal Herria (País Basco) se mantém acima da média em relação ao restante do Estado espanhol. Some-se a isto que os movimentos sociais são mais fortes nestas três nações que em qualquer outro território espanhol. As nações oprimidas, portanto, possuem mais esquerda socialista proporcionalmente que a média das demais regiões do Estado espanhol, o que é um dado muito importante. É claro que contabilizar isto somente com os resultados eleitorais é uma simplificação semelhante a considerar que a democracia consiste em emitir o voto a cada 4 anos, ou seja, trata-se aqui de um conceito e critério burgueses. Tanto na Catalunha quanto no País Basco, as opções nacionalistas são maioria em termos de voto e representantes, na Galiza são a terceira força. Dentre as esquerdas, o reformista Bloco Nacionalista Galego é a terceira força na Galiza, Bildu é a segunda força basca, praticamente empatado com o Partido Nacionalista Vasco, nacionalista de centro-direita (este partido possui duas correntes principais, uma independentista, outra autonomista, sendo que esta última está na direção do partido de seis anos para cá), e na Catalunha a esquerda nacionalista, mesmo fragmentada, se apresenta com força.


Um mundo melhor ou apenas melhores condições de luta?

VII

Não se trata de o mundo estar melhor ou pior com a independência da Catalunha, Galiza e País Basco, mas sim destes povos terem o direito à sua autodeterminação e serem reconhecidos e respeitados como nações. A luta anticapitalista, isto é, a luta internacionalista pela emancipação humana que almeja uma ordem social de igualdade substantiva, sem a dominação dos trabalhadores pelos capitalistas e seus Estados, por uma sociedade de produtores livremente associados, não anula a luta independentista dos povos oprimidos e vice-versa. Na verdade, muito pelo contrário, tais lutas se entrecruzam em um nacionalismo defensivo, anti-imperialista, socialista e baseada na fraternidade entre os povos, ou seja, internacionalista. O exemplo da Revolução Cubana é didático neste sentido, um povo que foi colonizado primeiramente por espanhóis e posteriormente pelos imperialistas estadunidenses, hoje pode levantar alto a bandeira de Cuba e afirmar sua nacionalidade ao mesmo tempo em que pratica o internacionalismo solidário na América Latina e na África.


Nacionalismos legítimos e ilegítimos

VIII

Equívoco costumeiro entre aqueles que não buscam entender as questões identitárias e históricas por detrás do nacionalismo catalão é a de comparar o independentismo catalão com o separatismo da Padânia. A Catalunha possui todos os atributos de uma nação histórica, já foi independente, tem idioma e literatura próprios. A nação catalã inclusive já travou guerras pela independência. Já a Padânia, trata-se de invento recente, de vinte anos para cá, da burguesia rica do norte da Itália que simplesmente quer separar-se da Itália sulista pobre, sem qualquer base popular. Portanto, não há nação Padânia (ou Padana), assim como não há nação no sul brasileiro, apesar da tradição sulista. Podemos falar em nação Vêneta (esta costumeiramente solidária ao nacionalismo basco e catalão), em nação Lígure, em nação Franco Provençal (Vale d’Aosta) e etc, mas não em Nação Padânia (ou Padana), que não possui nenhuma característica identitária além de uma ligação ideológica entre burguesias próximas à extrema-direita xenófoba. A Catalunha constitui-se como república soberana ainda nos anos trinta do século XX, reconhecida nos primeiros atos do breve governo republicano espanhol, com um movimento nacionalista-independentista sempre vinculado tanto à esquerda e aos movimentos populares, quanto à direita, mas nunca ao fascismo, ao contrário das reivindicações de privilégios da burguesia na Padânia ou em Santa Cruz, na Bolívia. O nacionalismo catalão moderno se centra nas figuras de Lluis Companys e Francesc Macià, expoentes da Esquerra Republicana de Catalunya. E, vale lembrar, os catalães colocaram-se historicamente ao lado dos republicanos durante a Guerra Civil, e contra Francisco Franco durante todo seu governo, seja à direita ou à esquerda.


PxC e o falso nacionalismo catalão

IX

Primeiramente cabe esclarecer que a Plataforma de Catalunha é um partido político da extrema direita, neofranquista e pró-Estado espanhol, cujo líder, Josep Anglada, foi dirigente de uma organização fascista muito conhecida, a Fuerza Nueva, que nos primeiros anos da democracia espanhola teve deputados ligados ao nacionalismo católico ultraespanholista e que teve representação parlamentar na transição. Logo, não faz sentido colocar esse exemplo como sendo representante do independentismo catalão, pois, de fato, a Plataforma de Catalunha é anti-independentista.


Seletividade? Ou a opressão gera resistência

X

Ora, o mais curioso é quando Antonio Luiz diz que apoia apenas a emancipação nacional dos palestinos e saarauis (Saara Ocidental), enquanto no mundo há centenas de povos oprimidos. E os curdos? E os cabílios? E os mapuches, sistematicamente esmagados por Pinochet e ainda hoje vítimas de intensa perseguição e brutal repressão? Ou os povos do Cáucaso? Não é necessário ser revolucionário para apoiar a emancipação de tais povos, mas, no mínimo, estar de acordo com os princípios democráticos. Desde Marx até Lênin, e a grande maioria de teóricos socialistas do século XX, reconhecem o direito de autodeterminação, assim como as principais correntes da esquerda o fizeram. Inclusive, Fidel, no início dos anos 90, fez um apelo ao Estado espanhol para reconhecer os direitos de bascos, catalães e galegos. Na Europa, os únicos setores de “esquerda” a negarem este reconhecimento são o chauvinismo estalinista e os reformistas socialdemocratas, dado que estes frequentemente estavam atrelados aos projetos estatais imperantes, assim como o Partido Comunista Francês atuou contra os independentistas argelinos, defendendo sua burguesia nacional, e até hoje se recusa a poiar a luta dos corsos ou reconhecer os direitos linguísticos de Provençais, Bascos e Bretões; e o Partido Comunista Espanhol, que, apesar de incluir em seu programa o direito de autodeterminação dos bascos, catalães e galegos, na prática não apoia, mas este nem sequer ousa negar isto em teoria.

*Texto feito em conjunto com Lucas Morais

Algumas referências:
SAINZ, José Luis de La Granja. El Nacionalismo Vasco: Um siglo de historia. Ed. Tecnos
KURLANSKY, Mark. The Basque History of the world. Penguin Books
SEIXAS, Xosé M. Núñez. Movimientos nacionalistas en Europa. Siglo XX. Ed. Sintesis
_____________________. Los nacionalismos en la España contemporánea (siglos XIX y XX) Barcelona: Hipòtesi
PÉREZ-AGOTE, Alfonso. The social Roots of Basque Nationalism. University of Nevada Press
GUIBERNAU, Montserrat. Nacionalismos: O Estado nacional e o nacionalismo no século XX. Jorge Zahar Editor
VELASCO SOUTO, Carlos F. 1936: Represión e alzamento militar en Galiza. Ed. A Nosa Terra

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