O texto a seguir nasce de um
debate* entre Lucas Morais (@Luckaz), Antônio Luiz Costa (@ALuizCosta) e Raphael
Tsavkko (@Tsavkko) sobre os movimentos nacionalistas Basco, Galego e Catalão e
sua relação com o Estado espanhol. Durante o debate, várias questões surgiram,
como a relevância da luta pela emancipação nacional, a força dos movimentos
nacionalistas, sua vitalidade e mesmo sua validade nos dias atuais. Questões
que pretendemos – não exaustivamente – responder a seguir, buscando
contextualizar a luta pela emancipação nacional enquanto ato de resistência dos
trabalhadores além de mero reflexo dos interesses da burguesia.
Sobre a história dos nacionalismo catalão, basco e galego
I
Bascos, catalães e galegos
possuem longa história de independência. Ainda no século XVII, a Catalunha
experimentou sua primeira e breve experiência republicana, repetida novamente
em fins do século XIX e novamente nos anos 30 do século XX. Ainda hoje é lembrado
o Dia da Catalunha (Diada
Nacional de Catalunya)
com protestos pela nação, rememorando
o 11 de setembro de 1714, ou a conquista final do país pelo Reino de Castela, e
a cada ano renova-se a esperança pelo dia em que a Catalunha será novamente
independente. Os Bascos, por sua vez, vieram a ser finalmente conquistados apenas
no fim do século XIX, antes disto passaram séculos sob o regime de Foros, ou
seja, possuíam total liberdade interna, entregando apenas a sua defesa externa
ao Reino de Castela. Euskal Herria (País Basco) é uma nação independente desde
os primeiros registros escritos sobre seu povo e sua língua milenar. Não foram
conquistados pelos romanos ou por qualquer outra nação ou império que passou
pela região. Resistiram a todas as investidas e, ainda hoje, mantém a luta por
sua independência. Já os galegos formaram um poderoso reino durante a idade
média, o Reino Suevo de Gallaecia, o primeiro reino independente de toda
Europa, estabelecido como tal no ano 410, e do qual fazia parte o condado
portucalense, que no século XII originou o Reino de Portugal e fez do galego
sua língua nacional, sob o nome de português. Daí parte unidade linguística da
faixa ocidental da Península Ibérica (Galiza e Portugal) e a longa luta do povo
galego, que durante séculos alternou períodos de soberania com outros de
submetimento a Castela, até o descabeçamento total da sua classe dirigente, o
que explica a falta de um projeto nacionalista burguês na Galiza atual.
O Reino da Galiza subsistiu até
1833 e, mesmo dominados pelo então Reino de Castela, o povo galego manteve
sempre vivas sua língua e cultura. O movimento nacionalista galego parte assim
do século XIX, tendo um caráter eminentemente progressista e republicano.
Os demais “nacionalismos periféricos” e a “espanholização” forçada
II
Há outras regiões da Península
Ibérica que já foram nações ou são reivindicadas como sendo parte das nações
referidas, como Valência e Ilhas Baleares. Ambos faziam parte do que
historicamente se chama Países Catalães, que são territórios de língua catalã.
Entretanto, os níveis de espanholização imposto a estes povos são diversos. É
óbvio que a Catalunha é o território com maior consciência nacional e, em
função disto, maior independentismo. Entretanto, nas Ilhas Baleares há menos
consciência nacional que na Catalunha, e menos ainda em Valência. Neste último,
os espanhóis conseguiram sobretudo introduzir um sentimento localista
anticatalão, ao ponto da burguesia de Valência defender que lá se fala uma
língua diferente chamada “valenciano”. Aqui, sim, ocorre a estratégia do
“divide et impera”, isto é, dividir os povos para imperar sobre eles. Do mesmo
modo o Estado espanhol afirma que o galego não tem nada a ver com o português,
quando hoje sabemos que a nossa língua, o português, nasceu realmente na antiga
Gallaecia. Aragão e Astúrias historicamente foram nações, com línguas próprias
que lutam para sobreviver, assim como Leão, cujo idioma sobrevive às duras
pelas em um território dividido com Castela, logo, sem qualquer status especial
ou possibilidade de ensino em escolas ou crescimento. Hoje, as línguas astur-leonesa
e aragonesa estão em processo de desaparição, com poucos milhares de falantes e
movimentos nacionalistas muito fracos. Isto se deve pela absorção realizada
pelo Reino de Castela (base do projeto nacional espanhol), que, desde muito
cedo, impôs a espanholização a estes povos.
Os tipos de nacionalismo e o desejo de liberdade
III
Não há somente um tipo de
nacionalismo. Há nacionalismos expansionistas e nacionalismos defensivos. É
claro que desde o Brasil ou Portugal é difícil compreender os conflitos de
nacionalidades, dado que nestes países referidos não se vive tais conflitos e
não há problemas no uso da própria língua, o que pode levar a crer que é sem
sentido a defesa de direitos linguísticos na Catalunha, Galiza e País Basco por
exemplo. Somente vivendo esta condição humilhante há a possibilidade de
compreender as determinações sociais que fundam a resistência, isto é, ao
sentir-se impotente perante as imposições do Estado espanhol, ao não poder
escolarizar os filhos na língua própria, como ocorre na Galiza por exemplo, ou
como quando o franquismo baniu e criminalizou as línguas basca, catalã e
galega. O fim do franquismo deixou um legado nefasto em que o basco passou a
ser falado por meros 40% da população, ainda que um forte movimento popular o
fez ressurgir, alcançando hoje perto de 70% da população. Mas é pouco. Bascos,
catalães e galegos querem ter o direito a ensinar seus filhos sem pedir
permissão para o Estado espanhol para tal. Bascos, catalães e galegos querem
ter o direito a votarem e serem eleitos, sem precisar pedir permissão a
tribunais espanhóis. É comum confundir “nacionalismo” como uma manifestação de
uma direita xenófoba e racista sem, porém, compreender as notáveis diferenças
entre o nacionalismo movido pelo ódio ao outro e o nacionalismo que busca
apenas garantir a (sobre)vivência cultural, econômica e a autodeterminação de
um povo.
Imperialismo versus nacionalismo
IV
Naturalmente, há um fundo de
verdade nas informações que Antonio Luiz coloca em debate, que o imperialismo
sempre tenta se aproveitar de contradições nacionais em benefício próprio, o
que é verdade. Entretanto, isto não anula a existência dos direitos de
emancipação nacional. Durante décadas a esquerda de todo o mundo doou seu apoio
e demonstrou solidariedade (quando não pegou em armas) para garantir os
direitos das nações e povos oprimidos em seu direito à autodeterminação e a
superação de seu status de colônia. A luta de bascos, catalães e galegos nada
mais é que a continuidade das lutas por emancipação nacional e pela
descolonização. Também é verdade que, por vezes, é a burguesia quem dirige ou
tem dirigido esses processos independentistas, mas, novamente, isto não anula a
existência de um povo sujeito de direitos.
O nacionalismo galego enquanto resposta dos trabalhadores
V
No caso galego, a burguesia
renuncia à nacionalidade galega e conforma-se com os lucros que lhe
correspondem por fazer parte do mercado espanhol, e, neste caso, é a esquerda
somente que defende a liberdade nacional do povo da Galiza. Ora, não é por
“separatismo” que se luta pela independência galega, e sim pela aspiração à
liberdade e independência frente o Estado espanhol, para que, então, a Galiza
possa se por em verdadeiro pé de igualdade na Península Ibérica, em relações
baseadas na igualdade, e não na imposição, e, claro, no respeito às identidades
nacionais. Esta soberania não tem como aspiração a exploração do homem pelo
homem, nem expandir-se como os impérios históricos, mas sim um movimento
defensivo antitético ao nacionalismo expansionista e imperialista do Estado
espanhol. É interessante notar que o nacionalismo galego é mais fraco ou menos
presente nas instituições que o basco e catalão, precisamente porque a
burguesia renuncia maioritariamente à nacionalidade galega, o que não acontece
nos casos basco e catalão, que também têm fortes partidos burgueses
nacionalistas. Além disso, a repressão franquista foi especialmente brutal com
a Galiza, que caiu logo sob o domínio dos fascistas e viu como toda uma geração
de seus melhores filhos morriam assassinados ou tinham que fugir para salvar a
vida. Só nos anos da guerra (1936-1939) estima-se que o número de vítimas
mortais do fascismo espanhol na Galiza pode ser de 40 mil em apenas 3 anos (a ditadura militar
argentina, estima-se que tenha matado mais de 30 mil), numa população inferior
aos 2 milhões e meio na altura. Portanto, o nacionalismo galego tem seu caráter
popular e de esquerda, com forte implantação sindical no movimento operário, e
sua vontade de integração no espaço internacional lusófono, enquanto berço
histórico da língua portuguesa.
A força relativa dos nacionalismos no Estado Espanhol
VI
Os critérios restritos aplicados
à esquerda catalã e basca, baseado no sucesso eleitoral, não refletem a
realidade destas nações. Ora, sabe-se qual a porcentagem da esquerda
anticapitalista em Espanha? Afinal, ali quase inexiste expressões
revolucionárias da esquerda. O Partido Comunista Espanhol, como tal, não tem
sequer um deputado no parlamento espanhol nestes momentos. Proporcionalmente, o
pensamento político de esquerda revolucionária tem maior porcentagem na
Catalunha, enquanto Galiza e Euskal Herria (País Basco) se mantém acima da
média em relação ao restante do Estado espanhol. Some-se a isto que os
movimentos sociais são mais fortes nestas três nações que em qualquer outro
território espanhol. As nações oprimidas, portanto, possuem mais esquerda
socialista proporcionalmente que a média das demais regiões do Estado espanhol,
o que é um dado muito importante. É claro que contabilizar isto somente com os
resultados eleitorais é uma simplificação semelhante a considerar que a
democracia consiste em emitir o voto a cada 4 anos, ou seja, trata-se aqui de
um conceito e critério burgueses. Tanto na Catalunha quanto no País Basco, as
opções nacionalistas são maioria em termos de voto e representantes, na Galiza
são a terceira força. Dentre as esquerdas, o reformista Bloco
Nacionalista Galego é a terceira força na Galiza, Bildu é a segunda força
basca, praticamente empatado com o Partido Nacionalista Vasco, nacionalista de
centro-direita (este partido possui duas correntes principais, uma
independentista, outra autonomista, sendo que esta última está na direção do
partido de seis anos para cá), e na Catalunha a esquerda nacionalista, mesmo
fragmentada, se apresenta com força.
Um mundo melhor ou apenas melhores condições de luta?
VII
Não se trata de o mundo estar
melhor ou pior com a independência da Catalunha, Galiza e País Basco, mas sim
destes povos terem o direito à sua autodeterminação e serem reconhecidos e
respeitados como nações. A luta anticapitalista, isto é, a luta
internacionalista pela emancipação humana que almeja uma ordem social de
igualdade substantiva, sem a dominação dos trabalhadores pelos capitalistas e
seus Estados, por uma sociedade de produtores livremente associados, não anula
a luta independentista dos povos oprimidos e vice-versa. Na verdade, muito pelo
contrário, tais lutas se entrecruzam em um nacionalismo defensivo,
anti-imperialista, socialista e baseada na fraternidade entre os povos, ou
seja, internacionalista. O exemplo da Revolução Cubana é didático neste
sentido, um povo que foi colonizado primeiramente por espanhóis e
posteriormente pelos imperialistas estadunidenses, hoje pode levantar alto a
bandeira de Cuba e afirmar sua nacionalidade ao mesmo tempo em que pratica o
internacionalismo solidário na América Latina e na África.
Nacionalismos legítimos e ilegítimos
VIII
Equívoco costumeiro entre aqueles
que não buscam entender as questões identitárias e históricas por detrás do
nacionalismo catalão é a de comparar o independentismo catalão com o
separatismo da Padânia. A Catalunha possui todos os atributos de uma nação
histórica, já foi independente, tem idioma e literatura próprios. A nação
catalã inclusive já travou guerras pela independência. Já a Padânia, trata-se
de invento recente, de vinte anos para cá, da burguesia rica do norte da Itália
que simplesmente quer separar-se da Itália sulista pobre, sem qualquer base
popular. Portanto, não há nação Padânia (ou Padana), assim como não há nação no
sul brasileiro, apesar da tradição sulista. Podemos falar em nação Vêneta (esta
costumeiramente solidária ao nacionalismo basco e catalão), em nação Lígure, em
nação Franco Provençal (Vale d’Aosta) e etc, mas não em Nação Padânia (ou
Padana), que não possui nenhuma característica identitária além de uma ligação
ideológica entre burguesias próximas à extrema-direita xenófoba. A Catalunha
constitui-se como república soberana ainda nos anos trinta do século XX,
reconhecida nos primeiros atos do breve governo republicano espanhol, com um
movimento nacionalista-independentista sempre vinculado tanto à esquerda e aos
movimentos populares, quanto à direita, mas nunca ao fascismo, ao contrário das
reivindicações de privilégios da burguesia na Padânia ou em Santa Cruz, na
Bolívia. O nacionalismo catalão moderno se centra nas figuras de Lluis Companys
e Francesc Macià, expoentes da Esquerra Republicana de Catalunya. E, vale
lembrar, os catalães colocaram-se historicamente ao lado dos republicanos
durante a Guerra Civil, e contra Francisco Franco durante todo seu governo,
seja à direita ou à esquerda.
PxC e o falso nacionalismo catalão
IX
Primeiramente cabe esclarecer que
a Plataforma de Catalunha é um partido político da extrema direita,
neofranquista e pró-Estado espanhol, cujo líder, Josep Anglada, foi
dirigente de uma organização fascista muito conhecida, a Fuerza Nueva, que nos
primeiros anos da democracia espanhola teve deputados ligados ao nacionalismo
católico ultraespanholista e que teve representação parlamentar na transição.
Logo, não faz sentido colocar esse exemplo como sendo representante do independentismo
catalão, pois, de fato, a Plataforma de Catalunha é anti-independentista.
Seletividade? Ou a opressão gera resistência
X
Ora, o mais curioso é quando
Antonio Luiz diz que apoia apenas a emancipação nacional dos palestinos e
saarauis (Saara Ocidental),
enquanto no mundo há centenas de povos oprimidos. E os curdos? E os cabílios? E
os mapuches, sistematicamente esmagados por Pinochet e ainda hoje vítimas de
intensa perseguição e brutal repressão? Ou os povos do Cáucaso? Não é
necessário ser revolucionário para apoiar a emancipação de tais povos, mas, no
mínimo, estar de acordo com os princípios democráticos. Desde Marx até Lênin, e
a grande maioria de teóricos socialistas do século XX, reconhecem o direito de
autodeterminação, assim como as principais correntes da esquerda o fizeram.
Inclusive, Fidel, no início dos anos 90, fez um apelo ao Estado espanhol para
reconhecer os direitos de bascos, catalães e galegos. Na Europa, os únicos
setores de “esquerda” a negarem este reconhecimento são o chauvinismo
estalinista e os reformistas socialdemocratas, dado que estes frequentemente
estavam atrelados aos projetos estatais imperantes, assim como o Partido
Comunista Francês atuou contra os independentistas argelinos, defendendo sua
burguesia nacional, e até hoje se recusa a poiar a luta dos corsos ou
reconhecer os direitos linguísticos de Provençais, Bascos e Bretões; e o
Partido Comunista Espanhol, que, apesar de incluir em seu programa o direito de
autodeterminação dos bascos, catalães e galegos, na prática não apoia, mas este
nem sequer ousa negar isto em teoria.
*Texto feito em conjunto com Lucas Morais
Algumas referências:
SAINZ, José Luis de La Granja. El
Nacionalismo Vasco: Um siglo de historia. Ed. Tecnos
KURLANSKY, Mark. The Basque History of the
world. Penguin Books
SEIXAS, Xosé M. Núñez. Movimientos
nacionalistas en Europa. Siglo XX. Ed. Sintesis
_____________________. Los
nacionalismos en la España contemporánea (siglos XIX y XX) Barcelona: Hipòtesi
PÉREZ-AGOTE, Alfonso. The social Roots of
Basque Nationalism. University of Nevada Press
GUIBERNAU, Montserrat. Nacionalismos:
O Estado nacional e o nacionalismo no século XX. Jorge Zahar Editor