Pré-Resolução
Num primeiro momento, era clara a intenção dos EUA em intervir, mesmo invadir a Líbia. Os interesses são inúmeros, vão desde o petróleo até o interesse em garantir que mais um Estado Árabe não caia nas mãos de um governo não tão alinhado aos interesses Yankees.
Tunísia e Egito, com governos "aliados" caíram e agora os EUA esperam para ver o quanto irão perder em termos de apoio, que não será mais incondicional. O governo do Iêmen periga cair, e o Bahrein está em um clima de quase guerra civil. Marrocos e Arábia Saudita vem enfrentando protestos esparsos e, de todos, apenas os protestos na Síria interessam ao Império, ainda que, da mesma forma, não saibam que governo poderia emergir com a queda de Assad.
Ao intervir na Líbia, os EUA garantem que, ao menos, terão algum papel na transição e podem ditar algumas regras. Com o país destruído, com a infra-estrutura prejudicada, os EUA surgiriam rapidamente como fonte de financiamento e apoio ao país necessitando de investimentos e rumo.
O petróleo viria como bônus.
A intenção dos EUA era a de intervir de qualquer maneira, e já existia um precedente: O Kosovo.
Durante o conflito do Kosovo com a Sérvia os EUA interviram ilegalmente, junto com a OTAN, para defender o lado Kosovar. A ONU foi forçada a fingir que não via nada e a apoiar posteriormente, constrangida, se responsabilizando pela pacificação posterior e pelo processo de reconstrução do país.
A ilegalidade ficou patente com a falta de reconhecimento posterior por parte mesmo de tradicionais aliados dos EUA, como a Espanha - temerosa de que o reconhecimento pudesse incitar ainda mais o nacionalismo Basco e Catalão (e em menor parte, o Galego).
Enfim, em um cenário em que a intervenção parecia certa, a ONU entrou como um possível mediador, via Resolução 1973.
A Resolução
Como explicado em post anterior, a Resolução 1973 visava criar ou impor regras mínimas para a intervenção, proibindo ou ao menos dificultando um novo Iraque ou Afeganistão, ou seja, uma ocupação de fato.
Como estava claro na Resolução, os "aliados" deveriam, antes de mais nada, prestar contas não só a ONU, mas também à Liga Árabe (que vem repetidamente criticando a ação, apesar de ter apoiado inicialmente a intervenção) e o ponto focal das ações era a proteção de civis e, finalmente, a garantia da imposição de uma no-fly zone, ou seja, impedir que as forças de Khadafi usassem aviação para atacar os rebeldes e civis.
Ou seja, a idéia central era a de equilibrar o conflito, garantindo o respeito mínimo aos direitos humanos dos civis e restringindo as ações armadas aos grupos beligerantes devidamente identificados.
Os pontos seguintes dão espaço para intervenção militar, mas deixam claros os limites. Do ponto 6 ao 12, a descrição das atividades permitidas para garantir a no-fly zone (em tradução não-literal e parcial):
6. Decide estabelecer o banimento a todos os vôos no espaço aéreo da Líbia, com o objetivo de proteger os civis;
7. Decide que o parágrafo 6 não se aplica a vôos humantários ou que facilitem assistência, nem se aplica a Estados que atuem na garantia desta resolução ou que sejam necessários à proteção de civis;
8. Autoriza os Estados-Membro a agir nacionalmente ou através de organizações e acordos a tomar todas as medidas necessárias para garantir o cumprimento do banimento de vôos imposto pelo parágrafo 6;
9. Convoca todos os Estados-Membro a apoiar e prover toda assistência necessária ao cumprimento da resolução;
10. Pede aos Estados-Membro que que coordenem ações em conjunto com o Secretário-Geral;
11. Decide que os Estados-Membro envolvidos devem informar ao Secretário Geral (da ONU) e ao Secretário Geral da Liga Árabe todas as medidas tomadas;
12. Requisita ao Secretário Geral que informe ao Conselho imediatamente sobre todas as ações tomadas pelos Estados-Membro.
Ilegalidade
Resolução aprovada e regras mínimas assinaladas, iniciou-se a intervenção. De início, vimos o uso desproporcional de mísseis contra alvos que, nem de longe, foram os designados pela resolução. Instalações militares aleatórias e mesmo um prédio do complexo onde vive Khadafi foram alvos de bombardeios.
É possível interpretar que, por "defesa da vida de civis", entenda-se tomar medidas para garantir sua segurança, mesmo militares, logo, seria legítimo o bombardeio de tropas em vias de atacar áreas civis. Mas isto de forma alguma justifica o ataque a forças militares em Trípole ou em áreas que estão sendo defendidas contra os rebeldes.
A diferença pode parecer tênue, mas militarmente faz muito sentido. Uma coisa é o ataque justificado a tropas no leste do país, região sob controle ou maior controle rebelde, que se preparam para atacar civis ou mesmo tropas rebeldes, outra bem diferente é atacar tropas estacionadas no oeste do país, região majoritariamente sob controle de Khadafi, logo, tropas que visam defendem o governo.
Não a toa, a China, através de sua imprensa oficial, demonstrou mal estar com os ataques.
A decisão de depor Khadafi não está nas mãos da coalizão que agora intervém na Líbia, logo, a destruição de toda a estrutura militar e da infra-estrutura Líbia não está na ordem do dia, ou ao menos não deveria. Isto - a destruição das defesas do governo - significariam abrir caminho para os rebeldes tomarem o poder, isto se os EUA não tomarem a iniciativa de, eles próprios, derrubarem Khadafi, intenção declarada pelo ministro da defesa inglês.
Segundo a resolução, os aliados devem "tomar todas as medidas necessárias (...) para proteger civis e áreas povoadas por civis sob ameaça de ataque". De fato, é extremamente amplo, mas à medida em que se analisa coletivamente todos os demais pontos da resolução, podemos pintar um quadro completo em que a mudança de regime não está na ordem do dia e que, por mera observação, entendemos que matar Khadafi teria exatamente o resultado não-previsto na resolução.
Se por um lado, pode-se interpretar que, a fim de evitar a morte de civis, Khadafi deva ser eliminado - afinal, é o alegado responsável -, por outro não há qualquer permissão para que a decisão de mudar o regime seja tomado por qualquer um a não ser o povo líbio.
Aliás, cabe ainda lembrar que não cabe ao Presidente, mas ao Congresso dos EU aprovar ações militares, o que, desde o início, coloca a intervenção na ilegalidade. Deputados Democratas contra a intervenção consideram até pedir o impeachment de Obama.
“Apesar de a ação ser considerada como a suposta proteção dos civis da Líbia, a proibição dos voos na zona de exclusão começou com um ataque à defesa aérea líbia e às forças de Kadafi. É um ato de guerra. O presidente fez declarações que tentam minimizar a ação dos EUA, mas aviões norte-americanos lançaram bombas e mísseis dos EUA. O país pode estar se envolvendo em um conflito com outra nação soberana. Nosso país não pode permitir outra guerra, econômica e diplomática.”Como se vê, um show de erros e ilegalidade, de todos os lados e em todas as direções.
Leitura recomendada:
O império enquadra a revolução, de Bruno Cava
Os perigos da intervenção humanitária na Líbia, de Robert Fisk