quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O Cáucaso Norte e a falência das ideologias e da repressão

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Cáucaso Norte, também conhecido como Cáucaso Russo. Nesta região de extrema diversidade étnica convivem as repúblicas da Chechênia, Ingushétia, Daguestão, Karatchaievo-Tcherkássia e Kabardino-Balkária, todas de maioria islâmica, além da Ossétia do Norte, de maioria cristã-ortodoxa. A região é historicamente conflituosa: ossetas e ingushes já entraram em guerra por questões de fronteira (1991, na esteira do fim da URSS), os chechenos já protagonizaram duas guerras sangrentas com os russos (1994-97 e 1999-2000), e o Daguestão vive em constante conflito interno, mas um novo fator de tensão vem surgindo na região.

A resistência à ocupação russa se deu estritamente em bases étnico-linguísticas e na história independente desses povos em relação à Rússia, porém, nos últimos anos, particularmente depois do 11 de setembro e da derrota chechena nas duas guerras contra a Rússia, o terrorismo de viés islâmico, salafista e com suposto apoio da Al-Qaeda, vem crescendo de forma assustadora.

Em meio à resistência e guerrilhas chechenas é possível encontrar um enorme contingente de muçulmanos de países do Golfo engajados na luta pela criação não mais da República Chechena de Ichkeria, islâmica mas moderada, e sim do Califado do Cáucaso, comprimindo todas as repúblicas islâmicas – ou não – da região.

Ao mesmo tempo em que cresce a repressão contra os ativistas de direitos humanos, crescem também os ataques a "autoridades" russas ou cooptadas pela Rússia na região. O caso mais notável foi o ataque à bomba que quase tirou a vida do presidente da Ingushétia, Yunus-Bek Yevkurov, em junho de 2009, mas os ataques e assassinatos continuam e são cada vez mais audaciosos.

A Chechênia e o Daguestão

Desde que assumiu a presidência da República Autônoma da Chechênia (em 2007), indicado por Putin – que havia abolido qualquer tipo de eleição para a presidência de repúblicas autônomas –, Ramzan Kadyrov vem promovendo uma escalada de violência sem precedentes na região. Inegavelmente este homem é um dos maiores responsáveis pelo completo descontrole na região.

Kadyrov, um ex-rebelde que traiu a causa nacionalista e assumiu a presidência após o assassinato de seu pai, presidente – nacionalista – da Chechênia nos anos 1990, é conhecido por sua brutalidade e violência extrema no trato com rebeldes e qualquer um que o afronte ou o desagrade. Ele é tido como responsável por perseguições, torturas e assassinatos diversos, como os das ativistas de direitos humanos Natalya Esterminova, Anna Politkovskaya e do advogado Stanislav Markelov. Um dos episódios mais marcantes da sua trajetória na presidência chechena foi a encomenda do assassinato de seu ex-guarda-costas, Umar Israilov, que vivia no exílio na Áustria e se dedicava a denunciar seu ex-chefe.

Junto com o problema das guerrilhas islâmicas, no Daguestão há ainda a questão do conflito inter-étnico entre as dezenas de minorias que habitam a república, que está longe de ser homogênea. Sob o mesmo teto convivem ávaros, lezgins, kumyks, russos, laks, e mais outra dezena de grupos minoritários, nenhum dos quais tem uma maioria significativa. Além disso, é válido notar que, ao longo da história, estes nunca foram grandes amigos.

O Daguestão é uma república artificial que agregou povos díspares sob uma mesma administração repressiva e um número impressionante de forças de segurança. Já em Kabardino-Balkária e Karatchaievo-Tcherkássia é visível o aumento das ações de grupos islâmicos. A perseguição a clérigos independentes e a ideia de que todo islâmico é um fanático em potencial – ou seja, a promoção de perseguições, prisões, tortura e assassinados de "elementos perigosos" – acabou por criar, de fato, este inimigo em lugares jamais imaginados anteriormente.

A raiz do conflito

Obviamente esta onda de violência e o crescimento do radicalismo islâmico na região possui razões várias. Em primeiro lugar, as sucessivas derrotas (ou o não cumprimento de seus objetivos) das guerrilhas e da resistência local ao longo dos anos 1990. Mas não só, também o fracasso generalizado dos grupos de orientação marxista ou similar por todo o Oriente Médio e proximidades (notadamente na luta Palestina, como Fatah, FPLP etc).

O fracasso dos regimes "pan-arabistas" no período 1960-1980, culminou com o surgimento e crescimento de grupos de caráter islâmico militante como Hizbollah, Hamas e o crescimento acelerado da Irmandade Muçulmana até, enfim, Talibã e Al-Qaeda. Ou seja, a ideia de guerrilha com viés de esquerda, majoritariamente laica, não "funcionou", ou ao menos esta é a visão corrente e propagada.

Em segundo lugar, Txente Rekondo, do Gabinete Basco de Análises Internacionais (GAIN), na página do Rebelion.org em 2009, aponta “o desemprego, a corrupção, a brutalidade policial, todos eles temperados com grandes doses de impunidade, os importantes bolsões de refugiados e deslocados” como “alguns dos fatores locais que fornecem altas doses de desestabilização à situação”.

Juntando estes dois momentos, a falência da ideologia dominante nos anos 1960-1980 e o aumento da repressão em conjunto com problemas estruturais e também advindos dos anos de conflito, temos o campo perfeito para a disseminação de uma ideologia extremista que deturpa os ensinamentos islâmicos e os utiliza como arma de ódio para a criação não de uma república baseada não mais no componente étnico local, mas na religião.

Cabe ainda uma terceira razão ou elemento, reflexo da Guerra ao Terror criada pelos EUA, a globalização/internacionalização dos grupos terroristas com o objetivo de angariar maior apoio, melhorar a logística e conseguir maior visibilidade. Com o surgimento da Al-Qaeda e de grupos de caráter islâmico, a solidariedade e alcance entre eles cresceu de forma assustadora. Se até o começo dos anos 1990 mal se ouvia falar em "terrorismo islâmico" – ainda que por vezes o termo seja absolutamente mal empregado – hoje em dia esta é a única expressão que se ouve.

Para além do perigo real do fanatismo religioso – que não é exclusividade islâmica – existe uma enorme máquina de propaganda, controlada notadamente por Israel e pelos EUA. Em muitos casos torna-se difícil definir o que é exatamente o “terrorismo islâmico” e quando um determinado ataque pode ser caracterizado como “terrorista”.

A internacionalização do que se convencionou chamar de terrorismo, porém, não é nova. Já nos anos 1960-1970 a ETA, a Fração Exército Vermelho (Baader-Meinhof) e outros grupos treinavam lado a lado com grupos palestinos e deles recebiam financiamento. Guerrilheiros brasileiros treinavam em Cuba e assim por diante.

O mito do “terrorismo islâmico”

O que parece novo é a suposta centralidade ideológica ou de ação na Al-Qaeda. Até onde isto é verdade não se sabe, mas as agências de inteligência costumam ligar a Al-Qaeda a quase todo tipo de ação coordenada islâmica. A mera presença de elementos árabes lutando junto à guerrilha islâmica chechena foi suficiente para que a máquina de propaganda russa logo anunciasse que a Al-Qaeda estava presente e que a resposta deveria ser à altura, ou seja, sangrenta. Até onde existe esta influência não se sabe.

O cientista político Robert Pape analisou – por meio das biografias e de entrevistas com familiares –, entre 1982 e 1986, 38 dos 41 "terroristas" suicidas do Hizbollah, um dos bastiões do que chamam de “terrorismo islâmico”. O senso comum diria que todos foram ataques cometidos por "militantes islâmicos" quando, na verdade, apenas 8 eram efetivamente “fundamentalistas” religiosos; 27 eram de grupos de esquerda (logo, não poderiam ser considerados militantes islâmicos) e 3 eram cristãos.

Ou seja, muitas vezes o que se trata por "terrorismo islâmico" é uma deturpação completa. Assim como a ideia de que absolutamente tudo é ação da Al-Qaeda e de supostas ramificações.

Sabe-se que representantes no exílio da República Chechena da Ichkeria estão tentando entrar em acordo com o líder linha-dura dos islâmicos para frear a onda de violência na região. O pior dos cenários, vale sempre lembrar, é de uma luta não só da resistência chechena contra a Rússia, mas entre as facções dos próprios chechenos, entre laicos e islâmicos, o que apenas contribuiria para uma piora na já frágil situação dos direitos humanos na região.

A receita do Kremlin de menos democracia e mais repressão vem demonstrando ser catastrófica. A imposição de Kadyrov ao povo checheno e de Yevkurov na Ingushétia (ainda que no lugar de um carniceiro odiado), não ajudaram a conquistar a população local, muito pelo contrário. Conjugando os fatores históricos e conjunturais já analisados com o crescimento da repressão russa sobre suas minorias, e o assassinato indiscriminado de opositores e ativistas, teremos no Cáucaso uma região prestes a explodir ou, na verdade, já explosiva e incontrolável, por maiores que sejam os esforços russos que, como se sabe, são esforços mal direcionados e desesperados.

Por fim, vale ainda lembrar que a recente intervenção russa na Geórgia (já no Cáucaso Sul) para "libertar" a Ossétia do Sul e Abkházia não contribuiu para acalmar os ânimos da região; na verdade, serviu apenas para demonstrar a hipocrisia da Russa e aumentar ainda mais a força dos ataques e o sentimento nacionalista das minorias.

A única conclusão possível é a de que as políticas russas para o Cáucaso Norte são, no mínimo, ineficazes e, mais ainda, são as grandes responsáveis ou pelo menos uma das responsáveis pelo crescimento do terrorismo dito islâmico na região, da resistência feroz e violenta e da mudança de paradigma da resistência na região.

Artigo publicado na Revista Fórum, número 94, de Janeiro de2011, nas bancas!
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