Cáucaso Norte, também conhecido como Cáucaso Russo. Nesta região de
extrema diversidade étnica convivem as repúblicas da Chechênia,
Ingushétia, Daguestão, Karatchaievo-Tcherkássia e Kabardino-Balkária,
todas de maioria islâmica, além da Ossétia do Norte, de maioria
cristã-ortodoxa. A região é historicamente conflituosa: ossetas e
ingushes já entraram em guerra por questões de fronteira (1991, na
esteira do fim da URSS), os chechenos já protagonizaram duas guerras
sangrentas com os russos (1994-97 e 1999-2000), e o Daguestão vive em
constante conflito interno, mas um novo fator de tensão vem surgindo na
região.
A resistência à ocupação russa se deu estritamente em
bases étnico-linguísticas e na história independente desses povos em
relação à Rússia, porém, nos últimos anos, particularmente depois do 11
de setembro e da derrota chechena nas duas guerras contra a Rússia, o
terrorismo de viés islâmico, salafista e com suposto apoio da Al-Qaeda,
vem crescendo de forma assustadora.
Em meio à resistência e
guerrilhas chechenas é possível encontrar um enorme contingente de
muçulmanos de países do Golfo engajados na luta pela criação não mais da
República Chechena de Ichkeria, islâmica mas moderada, e sim do
Califado do Cáucaso, comprimindo todas as repúblicas islâmicas – ou não –
da região.
Ao mesmo tempo em que cresce a repressão contra os
ativistas de direitos humanos, crescem também os ataques a "autoridades"
russas ou cooptadas pela Rússia na região. O caso mais notável foi o
ataque à bomba que quase tirou a vida do presidente da Ingushétia,
Yunus-Bek Yevkurov, em junho de 2009, mas os ataques e assassinatos
continuam e são cada vez mais audaciosos.
A Chechênia e o
Daguestão
Desde que assumiu a presidência da República
Autônoma da Chechênia (em 2007), indicado por Putin – que havia abolido
qualquer tipo de eleição para a presidência de repúblicas autônomas –,
Ramzan Kadyrov vem promovendo uma escalada de violência sem precedentes
na região. Inegavelmente este homem é um dos maiores responsáveis pelo
completo descontrole na região.
Kadyrov, um ex-rebelde que traiu a
causa nacionalista e assumiu a presidência após o assassinato de seu
pai, presidente – nacionalista – da Chechênia nos anos 1990, é conhecido
por sua brutalidade e violência extrema no trato com rebeldes e
qualquer um que o afronte ou o desagrade. Ele é tido como responsável
por perseguições, torturas e assassinatos diversos, como os das
ativistas de direitos humanos Natalya Esterminova, Anna Politkovskaya e
do advogado Stanislav Markelov. Um dos episódios mais marcantes da sua
trajetória na presidência chechena foi a encomenda do assassinato de seu
ex-guarda-costas, Umar Israilov, que vivia no exílio na Áustria e se
dedicava a denunciar seu ex-chefe.
Junto com o problema das
guerrilhas islâmicas, no Daguestão há ainda a questão do conflito
inter-étnico entre as dezenas de minorias que habitam a república, que
está longe de ser homogênea. Sob o mesmo teto convivem ávaros, lezgins,
kumyks, russos, laks, e mais outra dezena de grupos minoritários, nenhum
dos quais tem uma maioria significativa. Além disso, é válido notar
que, ao longo da história, estes nunca foram grandes amigos.
O
Daguestão é uma república artificial que agregou povos díspares sob uma
mesma administração repressiva e um número impressionante de forças de
segurança. Já em Kabardino-Balkária e Karatchaievo-Tcherkássia é visível
o aumento das ações de grupos islâmicos. A perseguição a clérigos
independentes e a ideia de que todo islâmico é um fanático em potencial –
ou seja, a promoção de perseguições, prisões, tortura e assassinados de
"elementos perigosos" – acabou por criar, de fato, este inimigo em
lugares jamais imaginados anteriormente.
A raiz do
conflito
Obviamente esta onda de violência e o
crescimento do radicalismo islâmico na região possui razões várias. Em
primeiro lugar, as sucessivas derrotas (ou o não cumprimento de seus
objetivos) das guerrilhas e da resistência local ao longo dos anos 1990.
Mas não só, também o fracasso generalizado dos grupos de orientação
marxista ou similar por todo o Oriente Médio e proximidades (notadamente
na luta Palestina, como Fatah, FPLP etc).
O fracasso dos
regimes "pan-arabistas" no período 1960-1980, culminou com o surgimento e
crescimento de grupos de caráter islâmico militante como Hizbollah,
Hamas e o crescimento acelerado da Irmandade Muçulmana até, enfim,
Talibã e Al-Qaeda. Ou seja, a ideia de guerrilha com viés de esquerda,
majoritariamente laica, não "funcionou", ou ao menos esta é a visão
corrente e propagada.
Em segundo lugar, Txente Rekondo, do
Gabinete Basco de Análises Internacionais (GAIN), na página do
Rebelion.org em 2009, aponta “o desemprego, a corrupção, a brutalidade
policial, todos eles temperados com grandes doses de impunidade, os
importantes bolsões de refugiados e deslocados” como “alguns dos fatores
locais que fornecem altas doses de desestabilização à situação”.
Juntando
estes dois momentos, a falência da ideologia dominante nos anos
1960-1980 e o aumento da repressão em conjunto com problemas estruturais
e também advindos dos anos de conflito, temos o campo perfeito para a
disseminação de uma ideologia extremista que deturpa os ensinamentos
islâmicos e os utiliza como arma de ódio para a criação não de uma
república baseada não mais no componente étnico local, mas na religião.
Cabe
ainda uma terceira razão ou elemento, reflexo da Guerra ao Terror
criada pelos EUA, a globalização/internacionalização dos grupos
terroristas com o objetivo de angariar maior apoio, melhorar a logística
e conseguir maior visibilidade. Com o surgimento da Al-Qaeda e de
grupos de caráter islâmico, a solidariedade e alcance entre eles cresceu
de forma assustadora. Se até o começo dos anos 1990 mal se ouvia falar
em "terrorismo islâmico" – ainda que por vezes o termo seja
absolutamente mal empregado – hoje em dia esta é a única expressão que
se ouve.
Para além do perigo real do fanatismo religioso – que
não é exclusividade islâmica – existe uma enorme máquina de propaganda,
controlada notadamente por Israel e pelos EUA. Em muitos casos torna-se
difícil definir o que é exatamente o “terrorismo islâmico” e quando um
determinado ataque pode ser caracterizado como “terrorista”.
A
internacionalização do que se convencionou chamar de terrorismo, porém,
não é nova. Já nos anos 1960-1970 a ETA, a Fração Exército Vermelho
(Baader-Meinhof) e outros grupos treinavam lado a lado com grupos
palestinos e deles recebiam financiamento. Guerrilheiros brasileiros
treinavam em Cuba e assim por diante.
O mito do
“terrorismo islâmico”
O que parece novo é a suposta
centralidade ideológica ou de ação na Al-Qaeda. Até onde isto é verdade
não se sabe, mas as agências de inteligência costumam ligar a Al-Qaeda a
quase todo tipo de ação coordenada islâmica. A mera presença de
elementos árabes lutando junto à guerrilha islâmica chechena foi
suficiente para que a máquina de propaganda russa logo anunciasse que a
Al-Qaeda estava presente e que a resposta deveria ser à altura, ou seja,
sangrenta. Até onde existe esta influência não se sabe.
O
cientista político Robert Pape analisou – por meio das biografias e de
entrevistas com familiares –, entre 1982 e 1986, 38 dos 41 "terroristas"
suicidas do Hizbollah, um dos bastiões do que chamam de “terrorismo
islâmico”. O senso comum diria que todos foram ataques cometidos por
"militantes islâmicos" quando, na verdade, apenas 8 eram efetivamente
“fundamentalistas” religiosos; 27 eram de grupos de esquerda (logo, não
poderiam ser considerados militantes islâmicos) e 3 eram cristãos.
Ou
seja, muitas vezes o que se trata por "terrorismo islâmico" é uma
deturpação completa. Assim como a ideia de que absolutamente tudo é ação
da Al-Qaeda e de supostas ramificações.
Sabe-se que
representantes no exílio da República Chechena da Ichkeria estão
tentando entrar em acordo com o líder linha-dura dos islâmicos para
frear a onda de violência na região. O pior dos cenários, vale sempre
lembrar, é de uma luta não só da resistência chechena contra a Rússia,
mas entre as facções dos próprios chechenos, entre laicos e islâmicos, o
que apenas contribuiria para uma piora na já frágil situação dos
direitos humanos na região.
A receita do Kremlin de menos
democracia e mais repressão vem demonstrando ser catastrófica. A
imposição de Kadyrov ao povo checheno e de Yevkurov na Ingushétia (ainda
que no lugar de um carniceiro odiado), não ajudaram a conquistar a
população local, muito pelo contrário. Conjugando os fatores históricos e
conjunturais já analisados com o crescimento da repressão russa sobre
suas minorias, e o assassinato indiscriminado de opositores e ativistas,
teremos no Cáucaso uma região prestes a explodir ou, na verdade, já
explosiva e incontrolável, por maiores que sejam os esforços russos que,
como se sabe, são esforços mal direcionados e desesperados.
Por
fim, vale ainda lembrar que a recente intervenção russa na Geórgia (já
no Cáucaso Sul) para "libertar" a Ossétia do Sul e Abkházia não
contribuiu para acalmar os ânimos da região; na verdade, serviu apenas
para demonstrar a hipocrisia da Russa e aumentar ainda mais a força dos
ataques e o sentimento nacionalista das minorias.
A única
conclusão possível é a de que as políticas russas para o Cáucaso Norte
são, no mínimo, ineficazes e, mais ainda, são as grandes responsáveis ou
pelo menos uma das responsáveis pelo crescimento do terrorismo dito
islâmico na região, da resistência feroz e violenta e da mudança de
paradigma da resistência na região.
Artigo publicado na Revista Fórum, número 94, de Janeiro de2011, nas bancas!
Blog de comentários sobre política, relações internacionais, direitos humanos, nacionalismo basco e divagações em geral... Nome descaradamente baseado no The Angry Arab
quinta-feira, 20 de janeiro de 2011
O Cáucaso Norte e a falência das ideologias e da repressão
2011-01-20T10:30:00-02:00
Raphael Tsavkko Garcia
Cáucaso|Chechênia|Daguestão|Europa|Islamismo|Política|Rússia|Terrorismo|Tortura|
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