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terça-feira, 22 de março de 2016

Alguns pensamentos enquanto o Islamofascismo ameaça Bruxelas

Ele é um refugiado. Não tem nada a ver com o que aconteceu e é também uma vítima dos terroristas.  Mas é solidário.
Eu adoro Bruxelas. Na verdade eu sou apaixonado pela cidade e já a visitei diversas vezes. Já me embebedei diversas vezes por lá, me encantei, conheci pessoas, participei de congressos, comi chocolate até não poder mais....

O sentimento é de raiva, tristeza e impotência. Exatamente aquilo que os terroristas esperam e, infelizmente, eles conseguiram. A tragédia já era anunciada há tempos. Era questão de quando.

Eu estava dormindo e acordei com um incômodo. Tentando voltar a dormir pensei "deixa eu ver o Twitter, tem algo errado". E tinha. Cenas chocantes, pessoas correndo, bombas explodindo e a notícia de mais e mais mortos no coração da Europa.

Além disso também surgiram os liberais de esquerda pra colocar panos quentes. E estes (os liberais de esquerda e os panos quentes) são os que ajudam a tornar impossível o combate ao fanatismo religioso e ao terrorismo islâmico.

Li, pasmado, um tuiteiro catalão tentar comparar os terroristas islâmicos aos judeus sob Hitler. Oras, os islâmicos são vítimas como os judeus foram, me disse um:
"TODO el terrorismo bolchevique-comunista se calificaba de judío por los nazis. Estudie la historia..."
Interessante. A diferença, digamos, básica é que os judeus eram ACUSADOS por Hitler, acusados falsamente, usados como bodes expiatórios, ao passo que os islamofascistas são, enfim, islâmicos.

Claro que precisamos diferenciar o islâmico do islamofascista, mas o segundo está contido no primeiro, pese a relação inversa não fazer sentido.

Sempre me incomoda quando, após atentados envolvendo muçulmanos, começam os gritos por "vocês muçulmanos tem que se manifestar, tem que se desculpar, se responsabilizar"... Discordo. A ação de fanáticos não é obra da maioria. De fato acho coerente que muitos se manifestem em pesar e repúdio - e muitos o fazem - mas não tenho direito a exigir nada e quem se cala diante do terrorismo praticado pelo ocidente contra o Oriente Médio tem menos direito ainda.

Porém, existe uma escala de responsabilidade que é preciso ter em mente: Aqueles que convivem nos mesmos bairros, nos mesmos espaços, nas mesmas mesquitas que radicais e fanatizados tem, penso eu, maior responsabilidade que os que não convivem com os radicais. Maior responsabilidade em denunciá-los ou mesmo em educá-los.

E todos nós temos responsabilidade também em pressionar nossos governos a parar com bombardeios criminosos, a parar com a política de fazer e desfazer ditaduras e ditadores. A parar com qualquer tipo de comércio, contato ou acordos com criminosos Sauditas, com militares assassinos e genocidas por todo o mundo (e, no caso aqui tratado, por todo o Oriente Médio).

Existem escalas de responsabilidade para todos nós.

Uma das responsabilidades pela situação também é do liberalismo europeu. Aquele que acha que censurar a internet é a solução ou mesmo parte dela para controlar os terroristas e o acabar com o terrorismo. Acham que lutando contra criptografia enquanto despejam bombas no Iêmen irão acabar com a reação terrorista.

Porque uma coisa é importante notar: O terrorismo é, por vezes (mas nem sempre) a reação do oprimido. Isso não quer dizer, no entanto, que a reação é justa ou tolerável. Não quer dizer que devemos cruzar os braços e aceitar. Não, pelo contrário, isso deveria nos dar mais força para combater as causas de parte dos problemas.

E digo parte porque nem todo terrorista vem do Iêmen bombardeado ou da Síria destruída. Muitos nascem e crescem em bairros europeus. Muitos até sofrem preconceito pela origem, outros não. Os backgrounds são extremamente diferentes. Muitos se radicalizam ao ver imagens do que o "ocidente" faz ao "seu povo", outros se radicalizam através do contato com outros já radicalizados. Outros são apenas malucos e há ainda de tudo, desde reprimidos sexuais e desajustados e criminosos que encontram no fanatismo religioso uma resposta às suas crises (não muito diferente do efeito de certas igrejas neopentecostais no Brasil, ressalvada a proporção). Em geral o neoterrorista islâmico na Europa é um indivíduo que busca uma identidade enquanto vive em uma constante tensão entre a tradição de sua família e a modernidade que o cerca.

Entender tudo isso não implica, no entanto, na concordância, aceitação ou mesmo legitimação de seus atos contra civis.

Se podemos entender parte do que se passa, não podemos concordar ou calar. E, mais importante, não podemos nos deixar encantar pelos discursos extremados de direitistas que buscam culpar os refugiados ou mesmo culpar o islamismo em si pelas ações de uma minoria fanatizada. As maiores vítimas do terrorismo islâmico são exatamente os islâmicos, não à toa estão fugindo para a Europa.

Voltando ao liberalismo europeu (e por liberalismo não me refiro ao econômico, imagino que tenha ficado claro, mas à interpretação liberal que mesmo a esquerda tem adotado dos direitos humanos e se mostrando cada vez menos capaz de lidar com as dicotomias entre direitos individuais e coletivos, algo que se expressa muito bem no fenômeno dos e das Social Justice Warriors), há os que simplesmente jogam a toalha dizendo que enquanto nós, ocidentais, não respeitarmos os direitos dos muçulmanos no Oriente Médio não mereceremos respeito em nossa terra. Há ainda quem ache mesmo legítimo sofrermos atentados pelo que "fazemos" com outros. Ou os que dizem ser impossível fazer alguma coisa contra os que pregam ódio porque... bem, apenas "porque".

Diante de posições como estas fica realmente difícil pensar em alternativas. E sim, ouso pensar que temos alternativas. Apenas retirar tropas do Oriente Médio, nesta altura, não resolveria nada. Como comentei, o terrorismo islâmico não é apenas reflexo disto, mas também de tensões identitárias que se apropriam a situação do Oriente Médio para legitimar ações. É preciso de políticas conjuntas, que vão desde políticas sociais amplas e concretas em bairros de maioria muçulmana buscando por um fim ou ao menos mitigar a guetização que muitos sofrem, à ações mais robustas de integração e melhoria da qualidade de vida.

Passa também, sem dúvida, pela não-tolerância à discursos religiosos de ódio. Passa por não aceitar excrescências como Sharia4Belgium e outros grupos proto-terroristas que são incubadores de soldados para o terrorismo religioso. Passa por uma interpretação menos liberal/individualista dos direitos humanos para uma interpretação mais coletiva, de responsabilidades sociais coletivas....

Passa por não permitir que aqueles que tenham ido à Síria possam retornar. Se foram capazes de tomar a decisão de ir (direito individual), não deveriam ter o direito de voltar e colocar em perigo o coletivo (direito coletivo).

Enfim, medidas e mudanças de mentalidade integradas, não isoladas, mas que dificilmente serão levadas a cabo. O futuro é sombrio. No momento resta chorar por Bruxelas, pelas vítimas e pelo que virá.

PS: Uso o termo "islamofascismo" por entender que há mais uma questão ideológica ou mesmo identitária envolvida que religião em si e concordando com Zizek.
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sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Ainda precisamos falar sobre imigração: a Europa diante da crise e seus limites

Ao menos uma CENTENA de mulheres sofreram ataques sexuais em Colônia, na Alemanha. Muitas denunciaram que os ataques foram perpetrados por homens árabes e do norte da África, e é preciso ter a real noção da dimensão disso.

Não se sabe (ainda) se os "homens árabes e do norte da África" eram imigrantes mais antigos, imigrantes recentes ou mesmo refugiados - pese as últimas informações indicarem que refugiados tenham participado dos ataques -, mas penso que é uma questão subsidiária.

O importante é entender os efeitos e também as causas.

Zizek, em brilhante artigo no fim do ano passado, lembrou da necessidade de se resgatar os valores ocidentais/europeus diante do influxo de imigrantes e refugiados. Não se trata de negar a entrada dos refugiados, mas de exigir padrões mínimos de convivência.

Não é novidade que o Oriente Médio está anos - quiçá décadas - atrasado em relação a diversos temas sociais, notadamente na questão do respeito e dos direitos das mulheres. Muitos imigrantes e refugiados chegam à Europa com uma visão distante da europeia do papel da mulher e tem dificuldades de integração - este recente ataque é um exemplo disso. O mesmo vale para questões ligados à sexualidade ou aos direitos LGBTs.

A Alemanha acerta ao receber refugiados, porém o governo não foi capaz ainda de analisar os efeitos desse refúgio para a coesão social do país (e da Europa) e nem formas de garantir a manutenção da coesão social. Muito fala-se na dicotomia entre integração e multiculturalismo, Zizek e Merkel concordam, ainda que por razões diferentes, que multiculturalismo não funciona. É preciso (mais) integração.

Eu vejo a necessidade de algo entre integração e multiculturalismo. É preciso respeitar as diferenças, até mesmo promovê-las, mas dentro dos marcos de um processo de integração, ou seja, é preciso aceitar o diferente DESDE QUE o diferente não vá de encontro com as bases fundamentais da sociedade europeia/ocidental. Música, cultura, mesmo traços culturais diversos são um acréscimo à cultura receptora, mas costumes baseados no desrespeito aos direitos das mulheres, LGBTs e etc não podem ser tolerados.

Não há multiculturalismo que possa passar por cima de abusos contra direitos humanos. Não pode e nem deve.

A mutilação genital feminina, por exemplo, é algo que faz parte da "cultura" de alguns povos, mas não pode ser tolerada na sociedade europeia. O imigrante/refugiado que chega à Europa deve ter isto em mente ou então voltar a seu país. A França, terra do laicismo (pese seus exageros e contradições) não tolera a Burka, logo, não cabe à imigrantes ou refugiados se considerarem perseguidos. Seus costumes (minoritários mesmo dentro da própria comunidade) não podem prevalecer sobre os costumes da sociedade hospedeira e dos valores fundamentais de respeito aos direitos humanos.

Não é um tema fácil, por vezes nem coisas óbvias como Burkas ou mutilação genital são simples de debater - especialmente quando discursos pós-modernos tomam conta. Os imigrantes e refugiados precisam ser tratados não como coitados, mas como seres pensantes e iguais, capazes de travar um debate sobre si e sobre sua cultura (e sobre a cultura que os recebe).
De um lado temos a direita que desumaniza o imigrante - se for negro "melhor" ainda -, que o trata como uma coisa, que mantém firme o discurso de "defesa" frente à "invasão" de imigrantes, em geral fugindo da fome, da guerra, em busca de melhores condições de vida...
Do outro lado temos setores da esquerda - e muitos comentadores de internet - que se limitam a considerar o imigrante um pobre coitado desesperado com direito a viver na Europa e ser recebido de braços abertos. Tratar como "pobre coitado" é, também, uma forma de desumanização.
E digo isso porque tanto o processo de infantilização quanto de desumanização tem, no fim, o mesmo resultado: Torna o imigrante/refugiado um incapaz. Impede que sua situação seja debatida e mesmo (ou especialmente) que ele tome parte nos debates sobre si. É preciso humanizar o imigrante para debater nossas brechas culturais - e para deixar claro o que podemos e não podemos aceitar.

Como disse o Zizek, a Europa não pode ter medo de impor seus valores em sua própria terra.

Cabe lembrar que buscar uma "nova vida" é algo que todos sonhamos, mas não é um "direito". Infelizmente é a dura realidade.  Buscar refúgio sim é um direito, mas mesmo aí há limites - como o respeito pelas leis e costumes do país receptor. E precisamos levar o debate para marcos e "standards" mais elevados se quisermos ter um futuro.

É fato que há parcelas de imigrantes (e mesmo de muita gente de esquerda) que encara a onda de imigração atual como uma "resposta", um "payback" pelo que os europeus fizeram com o resto do mundo por séculos.

Sem dúvida podemos enxergar a questão assim, mas então damos de cara com uma parede. Qual a solução? A anulação da Europa? Uma punição coletiva à milhões de pessoas pelos erros de seus antepassados (e pelos erros contínuos de muitos líderes atuais)? O que tal atitude traz de bom para o mundo senão mais desagregação, tornando-se um não-debate?

Feita esta introdução, reposto aqui texto que escrevi ano passado para o Brasil Post/Huffington Post que amplia alguns dos pontos (post este que era já uma versão mais elaborada e ampla de outro escrito para o Amalgama focando mais na questão muçulmana):

Precisamos falar sobre imigração: Europa, crise humanitária e o debate ignorado
 
A primeira coisa que precisamos entender sobre os imigrantes que tentam chegar da África e Oriente Médio à Europa, em muitos casos morrendo pelo caminho, abandonados, afogados, queimados, em total desespero, é que não se tratam nem de pobres coitados, e nem de não-humanos ou "coisas".

Estas são as duas posições majoritárias na maioria dos debates. Eles são apenas humanos, diferentes entre si, com histórias únicas, com passados e futuros distintos. São como nós.

De um lado temos a direita que desumaniza o imigrante - se for negro "melhor" ainda -, que o trata como uma coisa, que mantém firme o discurso de "defesa" frente à "invasão" de imigrantes, em geral fugindo da fome, da guerra, em busca de melhores condições de vida...

Do outro lado temos setores da esquerda - e muitos comentadores de internet - que se limitam a considerar o imigrante um pobre coitado desesperado com direito a viver na Europa e ser recebido de braços abertos. Tratar como "pobre coitado" é, também, uma forma de desumanização.
A verdade é que imigração não é uma crise temporária, mas uma crise permanente em que nós escolhemos não mais resgatar essas pessoas, logo, mais irão morrer. Como acabamos nesse vácuo moral em que perdemos qualquer senso de conexão com outros seres humanos? É muito simples: Pessoas que não são seres humanos não precisam de direitos, ou qualquer simpatia, então nós as desumanizamos através de linguagens políticas e pessoais. Nós falamos deles como doenças, como contágio, como vírus. Eles não são nós. Eles não podem se tornar nós.

Um debate sério

Ambos os lados, por vezes, esquecem de ir mais fundo no problema. Sim, existe uma invasão, mas longe de uma "invasão bárbara", trata-se da chegada de um número insustentável de pessoas com línguas diferentes, culturas diferentes, realidades e situações diferentes que causam prejuízo tanto à nação hospedeira quando à nação que deixaram, que se ressente da perda. Não, não estou dizendo que migração seja um fenômeno ruim, até porque é apenas um fenômeno natural e que carrega consigo muitos pontos positivos e mesmo necessários para a sobrevivência da espécie humana, mas sim que em excesso, causa problemas.

Não há um número "ideal" de imigrantes que um país possa/deva receber, o fato é que migração é uma realidade, mesmo uma necessidade. A questão é: Qual o limite? E não falo apenas em termos quantitativos, mas qualitativos. Para ambos os lados. Cérebros de países africanos ou do Oriente Médio migram para a Europa por mil razões, deixando seu país natal órfão de cérebros para facilitar seu crescimento, construção ou reconstrução. Fogem de guerra, de baixos salários, de violência, insegurança ou apenas porque não são valorizados.

Muitas vezes não são valorizados também no país hospedeiro, são vistos como pragas, como "ladrões de emprego", mesmo que muitas vezes só consigam sub-empregos ou aqueles empregos que o nativo não quer. A visão do imigrante, em geral, tem se tornado negativa. Não importa mais se qualificado ou não, se necessitando escapar ou não. A ideia é a de que mesmo hoje num sub-emprego, amanhã seu filho terá condições de disputar com o nativo, tomando seu "lugar de direito". Desperdiçamos desta maneira o imigrante e o imigrante passa a ele próprio se sentir desperdiçado.

Engana-se quem pensa que emigrar é algo simples, uma decisão que se tome sem pensar num estalo e que não tem consequências. Há consequências, muitas, especialmente para quem migra, como já descreveram Said, Gilroy, Kristeva e tantos outros estudiosos do assunto. Ser diáspora não é, enfim, fácil ou simples.

Crise e choque

Não podemos desprezar o fator do choque cultural, que existe. Mulheres de burka nas ruas de uma cidade europeia, pequenas cidades onde por vezes ouve-se mais um ou vários idiomas estrangeiros que o local e até algo mais perigoso, como movimentos de fanáticos que querem impor a sharia em países como a Bélgica.

2015-04-23-1429816032-3963357-294861hxbc3w.jpgEste é um lado, existe outro, obviamente, como esta campanha, "I am immigrant" ou "eu sou imigrante" demonstra com perfeição:

Precisamos pular do discurso vergonhoso do imigrante como inimigo e do discurso fácil apenas de direitos, sem a exigência também de responsabilidades e contrapartidas.

Há uma crise migratória e uma crise humanitária - ou mesmo colapso - porque é fato que o fluxo migratório para a Europa não é de migrantes que vão por vontade, mas porque são empurrados em sua maioria - ao menos no que tange a migração que vem da Síria, da Líbia, de regiões africanas e do Oriente Médio em meio a conflitos sangrentos, fome, miséria. A questão é, cabe à Europa (e EUA) criar as condições para que a migração seja fato natural e não "invasão", ou seja, parar de manipular política e economicamente países mais pobres para que funcionam sob seu controle e vontade.

Cada vez que os EUA ou a Europa derrubam ou sustentam um ditador, um governo, mais a imigração de pessoas desesperadas cresce. Fome, pobreza, falta de oportunidade, o mundo seria muito melhor não se todos estes que fogem desses problemas entrassem na Europa, mas se estes tivessem condições para alterar essa realidade em seus países.

Mas é bom ter em mente que o problema não é apenas na Europa (pese a mídia ter um foco eurocêntrico), mas na África do Sul, por exemplo, há uma crise clara em que sul-africanos adotam políticas ou ações xenófobas contra imigrantes de outros países africanos. É uma crise ou colapso global. Estamos falando da migração em massa e sem qualquer controle (pese não sem precedentes) de populações fugindo de conflitos e situações que, em muitos casos, são reflexo ainda dos processos de colonização e pressões/atuação europeia/americana constante.

O problema é mais que óbvio

A grande questão aqui é a da crise do capitalismo (crescimento canceroso, como bem colocou Meszarós), de uma crise sistêmica que impõe guerras em troco de reconstrução e, com isso, gira as engrenagens de diversas indústrias. O "dano colateral" - para além do óbvio - é a migração.

Enquanto diversos lados buscam tentar resolver o problema na ponta final da cadeia, poucos efetivamente observam que o problema está no começo da cadeia, na própria ideia de se fazer guerra para solucionar conflitos anteriores, de acirrar ânimos étnicos/ideológicos para fabricar conflitos, de sustentar parte considerável das economias do chamado primeiro mundo com guerra no terceiro mundo (via exportação de armas, por exemplo). O escritor Anders Lustgarten escreveu um artigo muito interessante para o The Guardian abordando exatamente a questão que coloco:
Em toda a raiva sobre a migração, uma coisa nunca é discutida: o que fazemos para causá-la. Um relatório publicado esta semana pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos revela que o Banco Mundial deslocou um impressionante número de 3,4 milhões de pessoas nos últimos cinco anos. Ao financiar privatizações, grilagem de terras e barragens, por apoiar empresas e governos acusados ​​de estupro, assassinato e tortura, e por colocar 50 bilhões de dólares em projetos classificados como de grande risco de impactos sociais "irreversíveis e sem precedentes", o Banco Mundial contribuiu enormemente para o fluxo de pessoas pobres/empobrecidas em todo o mundo. A única coisa mais importante que podemos fazer para impedir a migração é abolir a máfia do desenvolvimento: o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, Banco Europeu de Investimento e do Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento. Um segundo muito próximo é parar a bombardear o Oriente Médio. O oeste destruiu a infra-estrutura da Líbia, sem qualquer pista sobre o que iria substituí-la. O que sobra é um estado de vácuo comandado por senhores da guerra que estão agora no centro do contrabando de pessoas no Mediterrâneo. Estamos justo por trás do regime de Sisi no Egito que está erradicando a primavera árabe, reprimindo os muçulmanos e privatizando infra-estrutura a uma velocidade alarmante, tudo isso empurra um número enorme de pessoas para os barcos. Nosso trabalho passado na Somália, Síria e Iraque significa que essas nacionalidades estão no topo da lista de migrante

Recentemente a chanceler sueca Margot Wallstrom deu declarações que desagradaram à Arábia Saudita, para além de todo o debate específico sobre suas declarações - e hipocrisias -, sobra uma questão: E o comércio bilionário da indústria sueca de armas com não apenas a Arábia Saudita, mas com outros Estados francamente terroristas e ditatoriais?

Sem dúvida precisamos lidar com o problema que impõe a migração em massa hoje, mas de nada adianta apenas tentar enxugar o oceano com um pano, é preciso tratar das causas que levam à migração e, em especial, a migração em massa.

De nada adianta apenas deslegitimar como "fascismo" - embora haja muito disso - a percepção de parte da população europeia de que estão sendo invadidos. São, de fato, milhares e milhares de imigrantes que chegam todos os dias à Europa que, de quebra, enfrenta uma crise sem precedentes.

Nada justifica receber mal estes imigrantes ou usá-los como bodes expiatórios para mascarar as políticas criadas pelos próprios governos europeus, mas tampouco soluciona o problema apenas gritar que um lado é intolerante e, como acontece, dizer que os imigrantes tem que continuar vindo porque a "Europa merece por tudo que fez quando colonizou o mundo" - acreditem, já ouvi várias vezes este discurso.

Sim, a Europa fez muito (mal), o colonialismo deixa marcas até hoje, se reproduz, mas não vejo onde acirrar ânimos ou mesmo pregar uma versão estranha de vingança seja a solução. Como já escrevi:
A esquerda não é capaz de debater os medos da população que, em boa parte, acredita estar sendo "islamizada" e invadida, um sentimento que não é totalmente deslocado. A esquerda também não foi capaz de demonstrar para esta população que em grande parte o crescimento do fundamentalismo e da imigração (i)legal vem das ações de seus próprios Estados contra a África e o Oriente Médio. Ora, recentemente o presidente de Burkina Fasso foi deposto pela população e, ao invés de ser preso e julgado, fugiu do país com ajuda da... França. Ou seja, o antigo colonizador continua a ajudar aqueles líderes que fazem seu trabalho sujo e mantém países em situação de miséria e controle ferrenho.

É impossível que a situação ou o sentimento de invasão na Europa mude enquanto a presença da Europa no mundo não mudar também. Mas descartar como simples preconceito ou "nazismo" o sentimento de amplas camadas populares em relação aos imigrantes é querer fechar os olhos para a realidade e acabar entregando de vez o jogo para a extrema-direita.

Um sentimento nada desprezável

Precisamos debater seriamente a questão da migração, mas buscando argumentos verdadeiros e buscando especialmente entender os sentimentos não apenas dos europeus, mas dos imigrantes de todo o mundo. Porque migram? Quais são seus sonhos? Querem mesmo migrar ou são levados pela impossibilidade de viver em sua terra? O que podemos e devemos fazer para tornar o/seu mundo mais justo?

No dia 20 de abril ministros de interior e exterior europeus se reuniram e firmaram um programa de 10 pontos para lidar com a imigração e as crises humanitárias relacionadas. Alguns pontos interessantes, mas em geral nada que altere a realidade. Devolver imigrantes ilegais? Para onde? Para serem mortos pela ISIS, por exemplo? Combater contrabandistas? Isto vai realmente resolver o problema? Ao que parece o interesse da Europa é dificultar a chegada de imigrantes ilegais, mas sem combater as causas da imigração (em massa). Uma nota que seria cômica, não fosse trágica é a da declaração do primeiro ministro inglês David Cameron à BBC de que a marinha inglesa estava pronta para ajudar no resgate de reugiados, mas nem pensar receber estes refugiados no Reino Unido.

Sem dúvida estamos diante de um homem de coração imenso. Imenso e podre.

Não é uma surpresa que a Anistia Interncional tenha considerado o plano como "totalmente inadequado" e "quase além das palavras".

É importante a adoção de medidas para evitar a alta mortandade de imigrantes que tentam cruzar o mediterrâneo, assim como medidas para integrar e recebê-los, porém não pode ficar só nisso. A Europa irá continuar a receber milhares de imigrantes em situação desesperadora que acabarão nas ruas e periferias, sem emprego e sem esperanças e ponto? Sim, a Europa precisa assumir sua responsabilidade e mesmo receber o máximo de imigrantes que puder comportar, mas sem tratar das causas, os remédios adotados terão sempre prazo de validade curto e efeitos colaterais terríveis.

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quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Ataque ao #CharliHebdo e o jogo do medo

O ataque ao #CharlieHebdo é terrível e lamentável e pode ter consequências assustadoras. Independentemente de ter a ISIS como autora, se descobrirem que dentre os terroristas há emigrados, gente com cidadania francesa/europeia ou que tenham nascido na França/Europa, a pressão sobre os imigrantes de origem muçulmana será imensa (e já é).

É de se pensar que haverá reação violenta, com muito ódio, por parte da extrema-direita e, cada vez mais, de quem antes era moderado, mas foi se radicalizando sob o sentimento de "invasão", de que estão sendo invadidos por imigrantes, em especial muçulmanos, que muitas vezes não se integram e não adotam um estilo de vida "europeu".

Por outro lado, não podemos negar a existência de fanáticos perigosos dentro das comunidades de imigrantes muçulmanos. Sharia4Belgium é apenas um exemplo. O uso de burkas é outro. Se é verdade que muitas vezes a dificuldade de se integrar parte da negativa dos hospedeiros de aceitar algumas diferenças culturais e ter paciência e vontade, também é verdade que muitos chegam sem a menor intenção de se integrar, mas vivem em guetos autoimpostos professando versão radicais de sua religião.

No fim a intransigência de ambos os lados leva a que os moderados, os laicos, os humanistas, os integrados e integradores sejam alvos.

Veremos possivelmente políticas ainda mais restritivas aos muçulmanos na França e em toda a Europa, assim como mais ódio popular e, claro, mais ódio reativo da comunidade muçulmana, acuada. Cada vez mais os moderados perdem a batalha para os fanáticos.

E não vamos nos esquecer dos grandes responsáveis por criar e financiar grupos que posteriormente se tornam seus maiores algozes: EUA e aliados europeus - França inclusive.

Al Qaeda e agora ISIS são nada mais que crias desse grupo de países, financiados para derrotar inimigos pontuais (URSS antes e Assad hoje) que, dizem, saíram do controle. Outros, porém, duvidam que o controle tenha se perdido e que tudo não passa de cortina de fumaça para sustentar a indústria da guerra e do vigilantismo, impondo controles e dificuldades maiores à população mundial baseado no medo do terrorismo.

Ataques anteriores, como ao metrô de Londres ou de Madri levaram apenas à escalada de violência no Oriente Médio, África e à maior repressão na Europa. Quanto mais violência um lado pratica, com mais força o outro lado responde em um ciclo interminável.

Ciclo este que nubla reais problemas ideológicos, religiosos e de integração, criando um monstro impossível de lidar e anulando posições não-alinhadas ao fanatismo vigente.

Trata-se de um jogo baseado no medo para impor o controle. Os governos europeus irão dar declarações beligerantes, a população irá se voltar contra seus vizinhos, as comunidades atacaras irão se fechar ainda mais e veremos possíveis "respostas" contra o terrorismo que nada mais são que atos de terrorismo estatal, e estará criada a situação para a perpetuação do fanatismo e da violência.

É preciso deixar claro que não se trata de demonizar o islamismo ou os muçulmanos, e sim entender o jogo e o uso que as potências fazem. O dito islamismo radical não nasce do nada, mas de agressões claras do "ocidente", como a imposição do Xá no Irã, levando à Revolução Islâmica, a imposição de ditadores sanguinários laicos aliados aos EUA e Europa, como Mubarak, Saddam e tantos outros, o uso indiscriminado de Drones, como no Iêmen, ou mesmo a deposição violenta ou tentativa de ditadores como Kaddafi ou Assad.

Nasce ainda da negação da integração aos emigrados, pese ser uma via de mão dupla. Ódio cria ódio, é uma regra básica.

Enfim, devemos ter cuidado para analisar o cenário mais amplo, sem demonizações e sem nos deixar levar pelo fanatismo de qualquer dos lados.

Sobre a questão dos muçulmanos na Europa, recomendo: "A 'invasão muçulmana' da Europa"
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segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Da Primavera Bérbere ao Outono Islâmico

O que começou como um movimento de libertação nacional da minoria Bérbere no norte do Mali e a posterior formação do Estado de Azawad acabou como uma queda de braços entre a França, com aval da ONU e do governo malinês, e grupos islâmicos radicais, como o Ansar Dine e o Movimento pela Unidade e pela Jihad, da África Ocidental (Mujao), e a Al Qaeda do Magreb, todos ligados à Al Qaeda.
Por detrás da queda de braço, interesses étnicos, religiosos e financeiros.

De um lado tribos bérberes organizadas no MNLA (Movimento Nacional de Libertação do Azawad) e seus ex-aliados pontuais ligados à Al Qaeda, e do outro os interesses comerciais franceses e internacionais em uma região rica em minerais como urânio disfarçados por preocupação humanitária.
Os Bérberes encontram-se espalhados por diversos países do norte da África, sendo os Curdos daquele continente, ou seja, uma população de tamanho considerável, sem Estado, e espalhada por diversos outros Estados onde, em muitos casos, é tratada como inferior, tem sua língua proibida ou sua veiculação dificultada.

No Mali, os Tuaregues, ramo local do povo Bérbere, já ensaiaram dezenas de revoltas contra o governo central malinês com maior ou menor sucesso e buscam a formação de um Estado que abarque todos os Tuaregues em países vizinhos. Parece que não foi desta vez.

Fortalecidos por armamento vindo da Líbia e com soldados treinados por Khaddafi, o MNLA pôde pela primeira vez realmente impor perigo real ao governo malinês.

Após um golpe de Estado no Mali, em 21 de março de 2012, cerca de 3 mil rebeldes do MNLA tomaram de assalto as três grandes cidades de Kidal, Gao e Timbuktu – capitais regionais do norte do Mali – em meio à completa fragilidade do governo central e declararam sua independência.

O Mali vinha passando há meses por um processo de deterioração de suas instituições, seguido por um golpe de Estado e pela imposição de um governo de transição que buscava agregar diferentes posições políticas e foi surpreendido por mais uma revolta Bérbere, desta vez bem sucedida - ao menos temporariamente.

A vizinha Argélia também enfrenta dificuldades no combate tanto aos Tuaregues quanto à minoria Cabile, também de origem bérbere, na região do Mediterrâneo. Desde 1980 e da chamada Primavera Bérbere (que tomou nova força a partir de 2011 junto à Primavera Árabe na vizinha Tunísia) e da Primavera Negra de 2001 (quando perto de uma centena de Béberes Cabiles foram assassinados e milhares ficaram feridos ou mutilados em ações violentas do governo argelino contra manifestações por autonomia em um cenário de revoltas populares locais) lutam por maior reconhecimento de sua língua e cultura no país usando métodos pacíficos de manifestação, que muitas vezes são reprimidas com violência.

Já em abril de 2012 o MNLA e demais grupos islâmicos "aliados" controlavam virtualmente todo o norte do Mali, porém tensões entre estes grupos acabaram por decretar a derrota do MNLA e a perda das principais cidades conquistadas.

Para tanto, o MNLA contou com o apoio de grupos islâmicos radicais, mais interessados na formação de um califado fundamentalista do que em uma pátria para os Bérberes que, em geral, tendem para o laicismo ou para um islamismo moderado.

Financiados muito provavelmente pela Arábia Saudita e por poderosos do Golfo Pérsico, os grupos islâmicos ligados à Al Qaeda buscam se apoderar de uma região que tradicionalmente professou e professa um islamismo moderado, de escola jurídica Malikita e onde o Sufismo, vertente mística e não-radical, impera.

Monumentos Sufis e tumbas de importantes líderes da corrente foram destruídos pelos radicais.
Contra diversos prognósticos, o MNLA foi derrotado por seus aliados pontuais e o sonho de um Azawad livre se tornou mais difícil, mas não o sonho dos islamitas radicais de controlar a região e buscar, por fim, o controle de todo o Mali e de usar este território como base para ataques aos países vizinhos.

Ainda é difícil compreender completamente o que levou o MNLA à derrota em tão pouco tempo, especialmente quando consideramos sua maioria numérica e mesmo superioridade em termos de equipamentos bélicos, mas o fato é que foram virtualmente neutralizados e expulsos das principais cidades conquistadas.

É possível apontar, ao menos em algumas cidades, para a fragilidade do controle do MNLA que não apenas tinha de manter controlados os islâmicos radicais como combater outros grupos locais ligados à etnias minoritárias ou mesmo majoritárias localmente.

Conflitos ainda acontecem em cidades do norte, onde se enfrentam grupos islamitas que agora se opõem a um Estado Bérbere (preferindo a conquista de todo o Mali e a fundação de um Estado islâmico onde impere a Sharia) e o MNLA enfraquecido. O MNLA ainda tem de enfrentar a resistência da população em cidades como Gao, onde a maioria da população pertence a minorias africanas, como Fulas e Songais, que contam com sua própria milícia, e Ganda Iso.

De uma Primavera Bérbere, aos moldes da Primavera Árabe que varreu o Oriente Médio e o norte da África em 2012 e aos moldes dos movimentos autonomistas Cabiles, a situação passou a ser um Inverno Islâmico e um pesadelo real para a França, antiga metrópole que conta com a presença de 2.500 soldados no país e parece ser a única esperança do governo central malinês e de sua população na resistência ao fundamentalismo - mas cujo apoio não virá de graça em uma região rica em minérios.
Esta esperança, porém, sepulta os sonhos da população Bérbere do norte.

O fato é que a ONU busca intervir na região e conta com o apoio do exército francês e do apoio logístico do Reino Unido e da Alemanha. O Conselho de Segurança das Nações Unidas já deu sua permissão para uma ação francesa na região, apesar da discordância pontual dos EUA, que preferia uma ação comandada pela CEDEAO/ECOWAS (Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental), possivelmente para poder depois negociar melhores contratos de exploração dos minérios locais sem ter de passar pela França.

É preciso ainda recordar que originalmente o MNLA encontrou forças e armamento para derrotar o exército malinês no norte do país devido à intervenção dos EUA na Líbia, que conta também com significativa minoria Bérbere (Tuaregues e outros) que integrava, dentre outras, as forças de elite do exército de Khaddafi.

A situação, ao menos do ponto de vista diplomático, parece mais simples do que a situação, por exemplo, da Líbia e da Síria, onde existia resistência a uma intervenção, no caso da Líbia, e onde ainda existe muita confusão sobre os diversos grupos que se degladiam, no caso da Síria, e cujo governo ainda conta com apoio da Rússia e da China, tornando uma decisão na ONU difícil.

No caso do Mali, nem os islâmicos radicais ligados à Al Qaeda nem os rebeldes Bérberes contam com apoio internacional, ao menos não declarado - ainda que seja provável o apoio de radicais e milionários sauditas aos guerrilheiros islâmicos. Uma intervenção militar estrangeira torna-se portanto, factível, apesar do pouco interesse que o governo francês ou qualquer outro possa ter em ir para a linha de frente em uma batalha que pode custar vidas e trazer perdas políticas em casa.

Apenas os minérios e a possibilidade de contratos vantajosos - a região do norte do Mali, Azawad, é rica em minérios - justificam uma intervenção, assim como, em menor parte, o temor do fortalecimento de guerrilhas islâmicas na região do Magreb, que poderia causar impactos em todo o norte da África
O líder do Mujao, Abou Dardar, chegou a ameaçar atacar "o coração da França" caso o país mantenha sua cooperação militar com o Mali no combate às milícias islâmicas. Em Paris, o nível de alerta terrorista foi elevado e a segurança de pontos turísticos e de interesse reforçada.

Por outro lado, lideranças no MNLA ofereceram-se para ajudar a França a derrotar os islâmicos, mas não se sabe qual é o preço de sua ajuda e, tampouco, se estão dispostos a abrir mão de sua independência efêmera (que durou apenas de abril a junho de 2012) para receber ajuda externa no combate aos islâmicos. De fato, é complicado saber se o MNLA receberá ou oferecerá ajuda nesta questão, tudo depende de complicados arranjos políticos.

Enquanto a situação do Mali piora, militantes islâmicos impõem a Sharia pelo norte do país e já há casos reportados de penas de amputação aplicadas a criminosos e penas a quem insiste em ouvir música ou mesmo a quem utiliza toques de celular considerados "não islâmicos".

Na vizinha Argélia, centenas de estrangeiros foram feitos reféns por um grupo islâmico solidário aos radicais islâmicos malineses, possivelmente o braço da Al Qaeda no país, e vários foram mortos após a intervenção do exército do país. Outros ataques de milícias islâmicas solidárias não podem ser descartados.

Quando da tomada de poder por parte dos Bérberes do MNLA e a fundação do Estado de Azawad, o temor era do espalhamento do conflito com a adesão de grupos Bérberes de países vizinhos.
Hoje, o temor não é mais o de uma nova Primavera Bérbere, mas de um levante islâmico na região do Magreb que coloque a segurança internacional em risco.

Publicado originalmente no Brasil de Fato.
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terça-feira, 8 de março de 2011

O Machismo nosso de cada dia? Minha homenagem ao dia das Mulheres

O Machismo nosso de cada dia?

É comum em muitas rodas de conversa em meio aos protestos (ou revoluções?) por todo o mundo árabe, especialmente se houver uma cerveja, é o tema "Islamismo". Retrógrado, machista, atrasado, anti-iluminista e outros termos derrogatórios estão sempre presentes e as análises são costumeiramente superficiais.

Para muitos, a Arábia Saudita, de suas mulheres cobertas de preto, proibidas sequer de dirigir carros ou mesmo andar desacompanhadas na rua, ou o Afeganistão das burqas é o modelo ideal e mais bem acabo do que é o islamismo.

Se esquecem - ou não sabem e nunca perguntaram - de que estamos diante de interpretações ultra-radicais de um livro com quase dois mil anos, escrito em um período completamente diferente e que necessita sempre de extensiva interpretação. Sim, ainda estou falando do islamismo, mas poderia ser também de muitas correntes mais conservadoras do cristianismo.

Quando algum desavisado vê na TV as imagens das famosas celebrações xiitas da Ashura, onde homens e crianças se batem com a ponta cega a de facas até suas cabeças sangrarem, se esquece do cilício usado por membros da catolicíssima Opus Dei para se martirizar, ou mesmo do ritual de auto-flagelação que ainda existe em muitas comunidades cristãs - até mesmo no nordeste brasileiro.

Mas o "outro" é sempre estranho.

Voltando às burqas, é sempre bom lembrar ao leitor desavisado que as mulheres que hoje são forçadas a se cobrir da cabeça aos pés chegaram até a dirigir caminhões e pilotar aviões no Afeganistão dos anos 50 e 60, antes da invasão da União Soviética e da resposta do Talibã.

Os Talibãs que, aliás, que são em parte cria dos EUA (cristãos) e em parte da Arábia Saudita, de onde importaram boa parte de sua ideologia conservadora, conhecida como Wahhabismo que, acreditem, é bastante moderna, e vem de um pensador islâmico do século XVIII e não do Corão de mais de 1500 anos.

Falando em pensador, ou quase isso, temos Jim Jones, um pastor americano - logo cristão - que em 1978 se suicidou na Guinana Francesa junto a 917 membros de sua seita, Templo dos Povos. Estranho? Não é incomum entre seitas cristãs o suicídio ritual de membros. Mas, ainda assim, estranhamos o islamismo e seus costumes. Da mesma forma que a franca maioria dos cristãos considera Jim Jones uma aberração, o Wahhabismo também é rejeitado pela maioria dos muçulmanos.

Mas nem precisamos ir tão longe para encontrarmos referências bizarras da nossa sociedade (ou civilização) quando temos o genuíno Cristo, Inri Cristo, entre nós, não é mesmo?

Olhar o outro como estranho, até como inferior, como bárbaro, acaba por obscurecer sua história, e especialmente a nossa história. Um exemplo? De grande importância para o pensamento ocidental está Avicena, famoso médio e cientista... Muçulmano. Diversos filósofos, matemáticos e médicos que ajudaram a construir as bases da ciência moderna e que muitos de nós pensam ser "ocidentais", ou cristãos, eram muçulmanos. E num tempo em que o "ocidente" é que era referência de atraso.

Cruzadas, Inquisição, Peste, nenhum sistema de esgoto, cidades poluídas  e quase absoluta ignorância eram sinônimo da Europa, enquanto os estranhos muçulmanos criavam o que viria a ser nosso alfabeto, nossos numerais e a base de nosso pensamento.

Sociedades que aparentemente são totalmente distintas compartilham semelhanças em um grau assustador.Acreditamos piamente que a mulher na Arábia Saudita é vítima da maior e pior opressão possível, pois sequer podem andar sós, mas nos esquecemos que, no Brasil, bem no nosso quintal, 10 mulheres são mortas por dia e a cada 15 segundos uma sofre algum tipo de agressão.

Mulheres são queimadas por ácido no Afeganistão por se recusarem a casar ou simplesmente por maridos abusivos, no Brasil mulheres são espancadas pelos seus maridos e familiares por motivos igualmente banais. Diferem os métodos, mas não a opressão. Se por um lado as mulheres andam livremente nas ruas no "ocidente", são vítimas dentro de casa. E, claro, existem aquelas, nos países Árabes, com a mais plena liberdade, mas estes casos são tidos como exceção, ainda que sejam em países de grandes proporções, como Turquia, Rússia (com imensa população islâmica) ou mesmo Marrocos, Tunísia e Argélia.

Mesmo no Irã, onde a propaganda que corre o mundo é a de um regime opressor e sanguinário, as mulheres tem mais liberdade do que na prática em muitos recantos do interior do Brasil.

A objetificação da mulher e sua situação de submissão não é islâmica, mas permeia também o cristianismo - alguém conhece uma mulher católica padre ou no topo da hierarquia católica? - e a sociedade "ocidental" em si. As mulheres no Brasil, nos EUA u na Europa podem trabalhar, mas ganham em geram menos que os homens. Nestes mesmos lugares a maioria dos postos de comando estão nas mãos de homens, poucas são as mulheres que realmente mandam. Na política as mulheres raramente são 30% dos parlamentos.

Enfim,  nos preocupamos demais em olhar com reprovação para aquilo que não conhecemos e vemos apenas através da TV, carregado e propaganda e intencionalidade, e internalizamos nossos próprios problemas e conflitos, os tomamos como natural quando, na verdade, nenhum dos casos é normal, ou deveria ser assim encarado.

Mas, não se enganem, o problema não está nas religiões em si, elas são apenas reflexo da cultura, dos costumes, reproduzem os anseios e o pensamento da sociedade e fica ainda pior quando interpretada de maneira ainda mais conservadora ou ao pé da letra, como se estivéssemos 2 mil anos no passado.


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domingo, 6 de fevereiro de 2011

Quando confunde-se religião com práticas

É possível afirmar, como o fez Amâncio Siqueira em artigo recente no Amálgama, que o Irã é uma teocracia islâmica e, ao mesmo tempo, que é uma ditadura com diversos aspectos que merecem nosso franco repúdio.
Não há problema nisso.

Problema há quando ligam ditadura e repressão ao islamismo. Quando a ideia de “ditadura repressiva” passa a estar intimamente ligada ao islamismo, quando estamos diante não do islamismo, mas de uma leitura que, em geral, envergonha a maior parte daqueles que professam a religião.

Ditaduras independem de religião. São políticas. Feitas por homens que encontram uma desculpa para manter seu poder e perpetuar a repressão. Pode ser o Islamismo, Cristianismo ou até o Pastafarianismo – basta acreditar. Pessoas matam e morrem em nome de grandes ou de pequenas religiões. Entregam todo seu dinheiro para templos evangélicos. Trata-se de leituras deturpadas.

Obviamente a religião em si abre portas para o fanatismo, mas não pode ser totalmente responsável pelas leituras mais radicais que são feitas. Senão todos os crentes seriam fanáticos por princípio.

Imagino que nenhum cristão se vanglorie dos milhões de mortos durante as Cruzadas ou defenda a Inquisição, ou mesmo reconheça estes dois exemplos como base ou resultados do “Cristianismo”, mas apenas faces de uma igreja ou mesmo uma interpretação absurda da “palavra” de seu deus.

Quem já leu o Corão ou ao menos conhece muçulmanos o suficiente para ter uma ideia de seus costumes e práticas, vê que o suposto islamismo pregado por aqueles fanáticos nada mais é que uma versão fascista e deturpada de suas crenças. É a leitura crua, sem atualização ou interpretação honesta. É a politização de uma crença levada ao mundo estatocêntrico com o intuito de garantir a alguns o poder sobre os demais.

Seria, em paralelo, o mesmo que o Comunismo (sic) nas mãos de Stalin. O Comunismo seria naturalmente ruim pela interpretação genocida de alguns. Assim como as religiões, as teses marxistas foram usadas por milhões da pior forma possível. O problema não está na religião/ideologia, mas na prática desta, na apropriação e leituras feitas a posteriori por quem tinha claros interesses em desvirtuar aquilo que milhões seguem ou acreditam. Da mesma forma que você precisa interpretar e atualizar os escritos de Marx, que não têm nem 300 anos, você precisa interpretar e atualizar aquilo que foi escrito a 1500 ou 2 mil anos.

A própria gênese de muitas religiões se baseia apenas no interesse de um ou uns dominarem um grupo através do medo ou de promessas de benesses eternas. É bom ter isto em mente, porém: o neopentecostalismo, como tal, é nocivo desde seu princípio e por base.

Não estou aqui falando que o Islamismo ou mesmo o Cristianismo sejam “puros” — imagino já ter deixado isto claro –, que mesmo em seus ensinamentos não exista algo recriminável, longe disso, o problema na verdade são as interpretações ou, mais ainda, a insistência dos mais puristas em evoluir a si mesmos e à própria religião. No fim das contas, o problema surge quando, de apoio, religião passa a ser a razão da vida.

Post completo no Amálgama
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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Islamismo, o coadjuvante incômodo nos protesto egípcios

Os EUA e seus aliados - notadamente os comumente estridentes, mas atualmente silenciosos Israelenses - vem tentando fazer com que a opinião pública mundial olhe para os protestos no Egito não como uma Revolução Democrática em curso, contra a tirania - patrocinada por este mesmo EUA e aliados -, mas como uma cópia da Revolução Islâmica iraniana.

Nada poderia ser mais falso.

É fato que não podemos prever o futuro, o que sairá deste processo incontestavelmente revolucionário (sequer sabemos se Mubarak cairá, por mais que a torcida seja grande, mesmo dentro dos EUA), mas os indícios nos apontam para algo bem diferente do que ocorreu em 79 - e sem tomada de embaixada americana.

Os egípcios que protestam tem em comum com os iranianos de 79 apenas o fato de estarem lutando contra a opressão e a tirania e que, em ambos os casos, estes regimes foram (E são) apoiados pelos EUA. A partir daí, as histórias divergem.

Não há líder ou grupo por trás dos protestos egípcios. A Irmandade Muçulmana, tão temida pelos EUA - ainda que sem grandes fundamentos, explicarei adiante -, aderiu aos protestos dias após seu início e se boa parte da organização das manifestações (ou ao menos o início das marchas) se dá das mesquitas, é porque os protestos começam após a reza do meio-dia (a população é, afinal, majoritariamente muçulmana, ainda que os protestos contem com amplo apoio dos Coptas cristãos) e porque as mesquitas são um excelente ponto de encontro em que as forças de segurança não invadem ou batem, servindo como ponto neutro, seguro.

Não podemos esquecer que Mubarak, presidente/ditador egípcio instou os pregadores das mesquitas a discursar contra as manifestações. Apenas para constar.

Acreditar que, por várias manifestações começarem nas mesquitas, a revolução é "islâmica", é o mesmo que dizer queos EUA são uma teocracia cristão, já que todo presidente dos EUA usa deus em basicamente todos os seus discursos, na pose, em comunicados e etc.

Voltando à Irmandade Muçulmana, vale explicar brevemente o porque deste grupo dificilmente apresentar um "perigo islâmico". Em primeiro lugar - e mais importante - a Irmandade parece com o PT: Fragmentado, cheio de tendências e, assim como o partido brasileiro, tende a adotar posições mais brandas para e quando (se) chegar ao poder. Não necessariamente por esta ser uma vontade da população, mas pela própria organização interna conflituosa e diversa.

Existe na Irmandade mesmo aqueles que preferiam que o grupo sequer se apresentasse como partido. A caridade, os debates filosóficos e religiosos e a irmandade em si deveriam bastar.

Os protestos no Egito, enfim, são autenticamente populares. Não são influenciados - ao menos não de forma visível - por qualquer grupo, partido ou Estado. Mesmo a tentativa de El Baradei de se colocar como liderança esbarrou na desconfiança de muitos egípcios, que vem se organizando coletivamente para, por exemplo, distribuir comida, cuidar de feridos e proteger museus, casas e outros locais de importância.

Alguns já falam na Comuna do Cairo. Talvez uma precipitação, mas o fato é que muitos estão se auto-organizando e fazendo as vezes de Estado.

O medo do Islamismo também não se justifica na Tunísia, onde mesmo o líder do partido islamita local já declarou não defender imposição da sharia, se declara centrista e disse ainda não estar pronto para participar de eleições. Como se vê, bem diferente do perigo e terror pintados pelos EUA e pela mídia ocidental - esta que merece post a parte, em especial a ridícula e vergonhosa mídia tupiniquim.

Voltemos ao Irã: De fato a Revolução (que logo se tornaria Islâmica) era apoiada por diversos setores, desde comunistas a radicais islâmicos. Mas no país havia uma liderança clara, o Aiatolá. Havia um direcionamento, lideranças a seguir. No Egito a coisa parece ser mais ou menos autônoma e os partidos são marginais, meros espectadores em busca de espaço. Sejam eles de esquerda, direita ou religiosos.

O islamismo é apenas o perigo que aponta o ocidente para deslegitimar o anseio popular por liberdade. Estamos falando de um aliado importante dos EUA e de Israel, e não qualquer país insignificante, mas um colosso, o maior país Árabe (em população), um grande receptor de investimentos dos EUA e país estratégico em termos geográficos e políticos.

Não é pouca coisa. E a propaganda estadunidense não poderia deixar de agir.

Mas, enfim, as semelhanças com a Revolução Iraniana existem, mas não justificam o temor de uma repetição, ainda que, se se repetisse e fosse pela vontade da população, pouco poderia ser feito, ou mesmo deveria ser feito além de respeitar a vontade soberana do povo egípcio.

E os EUA, infelizmente, tem o terrível costume de jamais respeitar decisões de qualquer povo se estas forem diferentes da sua vontade, vide a vitória do Hamas na Palestina.
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quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O Cáucaso Norte e a falência das ideologias e da repressão

Cáucaso Norte, também conhecido como Cáucaso Russo. Nesta região de extrema diversidade étnica convivem as repúblicas da Chechênia, Ingushétia, Daguestão, Karatchaievo-Tcherkássia e Kabardino-Balkária, todas de maioria islâmica, além da Ossétia do Norte, de maioria cristã-ortodoxa. A região é historicamente conflituosa: ossetas e ingushes já entraram em guerra por questões de fronteira (1991, na esteira do fim da URSS), os chechenos já protagonizaram duas guerras sangrentas com os russos (1994-97 e 1999-2000), e o Daguestão vive em constante conflito interno, mas um novo fator de tensão vem surgindo na região.

A resistência à ocupação russa se deu estritamente em bases étnico-linguísticas e na história independente desses povos em relação à Rússia, porém, nos últimos anos, particularmente depois do 11 de setembro e da derrota chechena nas duas guerras contra a Rússia, o terrorismo de viés islâmico, salafista e com suposto apoio da Al-Qaeda, vem crescendo de forma assustadora.

Em meio à resistência e guerrilhas chechenas é possível encontrar um enorme contingente de muçulmanos de países do Golfo engajados na luta pela criação não mais da República Chechena de Ichkeria, islâmica mas moderada, e sim do Califado do Cáucaso, comprimindo todas as repúblicas islâmicas – ou não – da região.

Ao mesmo tempo em que cresce a repressão contra os ativistas de direitos humanos, crescem também os ataques a "autoridades" russas ou cooptadas pela Rússia na região. O caso mais notável foi o ataque à bomba que quase tirou a vida do presidente da Ingushétia, Yunus-Bek Yevkurov, em junho de 2009, mas os ataques e assassinatos continuam e são cada vez mais audaciosos.

A Chechênia e o Daguestão

Desde que assumiu a presidência da República Autônoma da Chechênia (em 2007), indicado por Putin – que havia abolido qualquer tipo de eleição para a presidência de repúblicas autônomas –, Ramzan Kadyrov vem promovendo uma escalada de violência sem precedentes na região. Inegavelmente este homem é um dos maiores responsáveis pelo completo descontrole na região.

Kadyrov, um ex-rebelde que traiu a causa nacionalista e assumiu a presidência após o assassinato de seu pai, presidente – nacionalista – da Chechênia nos anos 1990, é conhecido por sua brutalidade e violência extrema no trato com rebeldes e qualquer um que o afronte ou o desagrade. Ele é tido como responsável por perseguições, torturas e assassinatos diversos, como os das ativistas de direitos humanos Natalya Esterminova, Anna Politkovskaya e do advogado Stanislav Markelov. Um dos episódios mais marcantes da sua trajetória na presidência chechena foi a encomenda do assassinato de seu ex-guarda-costas, Umar Israilov, que vivia no exílio na Áustria e se dedicava a denunciar seu ex-chefe.

Junto com o problema das guerrilhas islâmicas, no Daguestão há ainda a questão do conflito inter-étnico entre as dezenas de minorias que habitam a república, que está longe de ser homogênea. Sob o mesmo teto convivem ávaros, lezgins, kumyks, russos, laks, e mais outra dezena de grupos minoritários, nenhum dos quais tem uma maioria significativa. Além disso, é válido notar que, ao longo da história, estes nunca foram grandes amigos.

O Daguestão é uma república artificial que agregou povos díspares sob uma mesma administração repressiva e um número impressionante de forças de segurança. Já em Kabardino-Balkária e Karatchaievo-Tcherkássia é visível o aumento das ações de grupos islâmicos. A perseguição a clérigos independentes e a ideia de que todo islâmico é um fanático em potencial – ou seja, a promoção de perseguições, prisões, tortura e assassinados de "elementos perigosos" – acabou por criar, de fato, este inimigo em lugares jamais imaginados anteriormente.

A raiz do conflito

Obviamente esta onda de violência e o crescimento do radicalismo islâmico na região possui razões várias. Em primeiro lugar, as sucessivas derrotas (ou o não cumprimento de seus objetivos) das guerrilhas e da resistência local ao longo dos anos 1990. Mas não só, também o fracasso generalizado dos grupos de orientação marxista ou similar por todo o Oriente Médio e proximidades (notadamente na luta Palestina, como Fatah, FPLP etc).

O fracasso dos regimes "pan-arabistas" no período 1960-1980, culminou com o surgimento e crescimento de grupos de caráter islâmico militante como Hizbollah, Hamas e o crescimento acelerado da Irmandade Muçulmana até, enfim, Talibã e Al-Qaeda. Ou seja, a ideia de guerrilha com viés de esquerda, majoritariamente laica, não "funcionou", ou ao menos esta é a visão corrente e propagada.

Em segundo lugar, Txente Rekondo, do Gabinete Basco de Análises Internacionais (GAIN), na página do Rebelion.org em 2009, aponta “o desemprego, a corrupção, a brutalidade policial, todos eles temperados com grandes doses de impunidade, os importantes bolsões de refugiados e deslocados” como “alguns dos fatores locais que fornecem altas doses de desestabilização à situação”.

Juntando estes dois momentos, a falência da ideologia dominante nos anos 1960-1980 e o aumento da repressão em conjunto com problemas estruturais e também advindos dos anos de conflito, temos o campo perfeito para a disseminação de uma ideologia extremista que deturpa os ensinamentos islâmicos e os utiliza como arma de ódio para a criação não de uma república baseada não mais no componente étnico local, mas na religião.

Cabe ainda uma terceira razão ou elemento, reflexo da Guerra ao Terror criada pelos EUA, a globalização/internacionalização dos grupos terroristas com o objetivo de angariar maior apoio, melhorar a logística e conseguir maior visibilidade. Com o surgimento da Al-Qaeda e de grupos de caráter islâmico, a solidariedade e alcance entre eles cresceu de forma assustadora. Se até o começo dos anos 1990 mal se ouvia falar em "terrorismo islâmico" – ainda que por vezes o termo seja absolutamente mal empregado – hoje em dia esta é a única expressão que se ouve.

Para além do perigo real do fanatismo religioso – que não é exclusividade islâmica – existe uma enorme máquina de propaganda, controlada notadamente por Israel e pelos EUA. Em muitos casos torna-se difícil definir o que é exatamente o “terrorismo islâmico” e quando um determinado ataque pode ser caracterizado como “terrorista”.

A internacionalização do que se convencionou chamar de terrorismo, porém, não é nova. Já nos anos 1960-1970 a ETA, a Fração Exército Vermelho (Baader-Meinhof) e outros grupos treinavam lado a lado com grupos palestinos e deles recebiam financiamento. Guerrilheiros brasileiros treinavam em Cuba e assim por diante.

O mito do “terrorismo islâmico”

O que parece novo é a suposta centralidade ideológica ou de ação na Al-Qaeda. Até onde isto é verdade não se sabe, mas as agências de inteligência costumam ligar a Al-Qaeda a quase todo tipo de ação coordenada islâmica. A mera presença de elementos árabes lutando junto à guerrilha islâmica chechena foi suficiente para que a máquina de propaganda russa logo anunciasse que a Al-Qaeda estava presente e que a resposta deveria ser à altura, ou seja, sangrenta. Até onde existe esta influência não se sabe.

O cientista político Robert Pape analisou – por meio das biografias e de entrevistas com familiares –, entre 1982 e 1986, 38 dos 41 "terroristas" suicidas do Hizbollah, um dos bastiões do que chamam de “terrorismo islâmico”. O senso comum diria que todos foram ataques cometidos por "militantes islâmicos" quando, na verdade, apenas 8 eram efetivamente “fundamentalistas” religiosos; 27 eram de grupos de esquerda (logo, não poderiam ser considerados militantes islâmicos) e 3 eram cristãos.

Ou seja, muitas vezes o que se trata por "terrorismo islâmico" é uma deturpação completa. Assim como a ideia de que absolutamente tudo é ação da Al-Qaeda e de supostas ramificações.

Sabe-se que representantes no exílio da República Chechena da Ichkeria estão tentando entrar em acordo com o líder linha-dura dos islâmicos para frear a onda de violência na região. O pior dos cenários, vale sempre lembrar, é de uma luta não só da resistência chechena contra a Rússia, mas entre as facções dos próprios chechenos, entre laicos e islâmicos, o que apenas contribuiria para uma piora na já frágil situação dos direitos humanos na região.

A receita do Kremlin de menos democracia e mais repressão vem demonstrando ser catastrófica. A imposição de Kadyrov ao povo checheno e de Yevkurov na Ingushétia (ainda que no lugar de um carniceiro odiado), não ajudaram a conquistar a população local, muito pelo contrário. Conjugando os fatores históricos e conjunturais já analisados com o crescimento da repressão russa sobre suas minorias, e o assassinato indiscriminado de opositores e ativistas, teremos no Cáucaso uma região prestes a explodir ou, na verdade, já explosiva e incontrolável, por maiores que sejam os esforços russos que, como se sabe, são esforços mal direcionados e desesperados.

Por fim, vale ainda lembrar que a recente intervenção russa na Geórgia (já no Cáucaso Sul) para "libertar" a Ossétia do Sul e Abkházia não contribuiu para acalmar os ânimos da região; na verdade, serviu apenas para demonstrar a hipocrisia da Russa e aumentar ainda mais a força dos ataques e o sentimento nacionalista das minorias.

A única conclusão possível é a de que as políticas russas para o Cáucaso Norte são, no mínimo, ineficazes e, mais ainda, são as grandes responsáveis ou pelo menos uma das responsáveis pelo crescimento do terrorismo dito islâmico na região, da resistência feroz e violenta e da mudança de paradigma da resistência na região.

Artigo publicado na Revista Fórum, número 94, de Janeiro de2011, nas bancas!
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sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O "Dia Internacional para Queimar o Alcorão" como representação dos EUA

Está marcado para 11 de setembro o chamado "Dia Internacional para Queimar o Alcorão", idéia estúpida que só poderia ter saído da cabeça de um pastor estadunidense fundamentalista.
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Ninguém sabe, aliás, se vai haver a queima ou não, o Pastor não se decide.
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Mas o que surpreende não é a data em si, não é a estupidez, a intolerância e a ignorância típica de evangélicos fundamentalistas - que se aproximam perigosamente do fundamentalismo islâmico -, mas a reação do governo dos EUA.

Obviamente, o governo censurou a idéia, comentou que era idiota e perigosa, se indignou... Mas, por detrás de todo este bom-mocismo se esconde o único e real motivo para que o governo tenha se "indignado": As tropas. A imagem sagradados EUA no mundo - algo que somente eles acreditam que tenham, claro.

Robert Gibbs, Pota-Voz da Casa Branca:
"O anúncio da queima do Alcorão coloca nossas tropas em um caminho perigoso, qualquer tipo de atividade como essa será uma preocupação para este governo."
General David Petraeus:
"Estou muito preocupado com as possíveis repercussões de queimar exemplares do Alcorão. Só o boato de que isso poderia acontecer já provocou manifestações. Se de fato ocorrer, a segurança dos nossos soldados e civis seria colocada em risco e cumprimento da missão seria muito mais difícil" "É justamente esse o tipo de ação que o Talibã usa e poderia causar problemas significativos. Não apenas aqui, mas em todo o mundo onde estamos comprometidos com a comunidade islâmica"
E mais:
As polícias locais e o FBI também levam a sério a atitude radical da igreja, que é uma potencial ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos.
Obama também resolveu apelar:
"Espero que ele entenda que este é um ato destrutivo", que pode colocar nossos jovens soldados em perigo. Se ele estiver ouvindo, espero que entenda que o que está propondo é completamente contrário aos valores americanos".

"Isso é uma fonte de recrutamento para a al-Qaeda. Você pode ter sérios problemas de violência em lugares como Paquistão ou Afeganistão. Isso pode aumentar o recrutamento de indivíduos que podem querer se explodir em cidades americanas ou europeias"

A preocupação não é com o absurdo de se aceitar as declarações ensandecidas de um fanático religioso que colocam todos os mais de 1 bilhão de muçulmanos no mesmo saco - quando na verdade os fundamentalistas são apenas uma pequena parcela, igualmente presente no seio das igrejas cristãs - mas, como sempre, apenas consigo, com os EUA e seus soldados assassinos e invasores.

A questão não passa pelos direitos humanos, pela tolerância religiosa ou mesmo pelo respeito aos próprios muçulmanos dos EUA - seria demais esperar que o governo dos EUA se preocupasse com alguém além de suas fronteiras - mas apenas pela hipocrisia egoísta estadunidense de que o ato deste fanático irá pôr suas tropas em perigo, irá fazer crescer o ódio - já imenso - contra os EUA nos países invadidos e brutalizados por este país amante da democracia (sim, ironia total).

O pior, aliás, é acreditar que esta atitude isolada -significativa, mas limitada - seria o único e decisivo fator de desestabilização no mundo muçulmano que comprometeria "todo o trabalho" dos EUA. Como se vê, a arrogância dos EUA permanece intacta. Não importa o quão atolados e desacreditados estejam, ainda se consideram acima do bem e do mal.

Inegavalmente, este ato isolado pode ter consequências terríveis, dezenas de protestos já tiveram lugar no Paquistão e Afeganistão, contra a possível queima do Corão, mas é preciso analisar o quadro amplo: Esta pode ser a gota d'água., o ponto culminante de um processo que não é novo. Ou pode, também, ser apenas mais uma gota no mar de indignação - não só islâmica, mas mundial - às ações criminosas dos EUA, semelhantes aos atos de fanatismo fundamentalista de certas lideranças evangélicas.

A queima do Corão simboliza, pode-se dizer, as motivações dos EUA nos países islâmicos invadidos, o de mostrar o islamismo como um mal a ser exterminado. Ou, por outro lado, o de reforçar o papel dos EUA de nação cristã, numa cruzada para impor seus valores "democráticos" que, sem dúvida, vão em conjunto com a noção de "cristandade". O simbolismo, sem dúvida, é significativo. Uma representação crua daquilo que é os EUA no Oriente Médio.

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segunda-feira, 19 de julho de 2010

Religiosidade versus Laicismo na França: A Burca da vez.

Entrando no debate sobre o véu islâmico na França com o Hugo AlbuquerqueRafael Neves e André Egg. Diferentemente do comum, não busco soluções ou tomo posição clara, honestamente, acredito que este assunto tenha múltiplas facetas e explicações e, mesmo me incluindo em um dos grupos, não tenho opinião totalmente formada e acredito que ambos os lados tenham sua razão.

O ponto central de boa parte da discussão, tanto nos blog quanto no Twitter foi o do multiculturalismo, laicismo e da opressão feminina. Todos são válidos, dentro de determinados limites.

As mulheres sendo ou não obrigadas a usar o véu, a questão vai além.
 Eu vejo 4 grupos diferentes dos defensores da proibição dos véus, burcas ou niqabs:

1. O grupo dos laicistas radicais que, efetivamente, lutam contra qualquer tipo de ostentação religiosa. Eu, por exemplo, me somo a estes.

Mas o problema deste grupo é que, em alguns casos, o véu é imposição cultural e não religiosa. A linha que separa as coisas é dificílima de enxergar e, até que ponto existe de fato esta separação?

2. O grupo dos defensores dos direitos das mulheres supostamente oprimidas. A desculpe é a de que as mulheres seriam oprimidas, forçadas a usar o véu contra sua vontade. Obviamente que isto funciona em alguns casos, mas não em todos.

O problema é óbvio, muitas não usam o véu por opressão, mas por escolha. Ainda que, para mim, seja dificil acreditar que alguém tenha o interesse de se anular e de se esconder sem ter sofrido algum tipo de doutrinação perversa.

3. O grupo dos xenófobos que, creio, é o principal incentivador destas medidas. O medo do terrorismo - como se TODO islâmico fosse terrorista em potencial -, o medo do desconhecido e o medo de uma cultura/religião estranha. Este grupo, aliás, eu creio que se divide

3.1. Xenófobos: Grupos tradicionalmente anti-imigração que encontraram um novo alvo;
3.2. Apavorados: Os amigos da Regina Duarte que, de fato, existem. São os que tem medo do "desconhecido" e acabam adotando uma postura xenófoba momentânea motivada pelo medo do "outro".
3.3. Os da tese do terrorismo: Outros, eu vejo, simplesmente acreditam que não só a vestimenta pode esconder alguma coisa potencialmente perigosa - mulheres-bomba não são novidade -, como também acreditam que o uso do véu se trata de um fanatismo intolerável e que potencialmente pode fazer crescer o terrorismo no país.

4. Um grupo que oscila entre todos e que teme o crescimento do fundamentalismo supostamente representado pelo uso do véu e que não aceita a violação da laicidade do Estado. E, enfim, que teme os problemas de segurança como mulheres cobertas se recusando a se identificar, a serem identificadas e etc.

Os grupos se movem, podem se confundir, mas acredito que é por aí. Filosoficamente eu concordo com o laicismo radical francês, com a proibição da ostentação de todo e qualquer símbolo religioso em escolas, locais públicos e governamentais, mas por outro entendo que, ao menos no caso dos muçulmanos, a proibição não só tem caráter xenófobo - característica da extrema-direita e da direita no poder -, como o efeito será o contrário do esperado.

Por mais que algumas características da xenofobia francesa não sejam de todo incompreensíveis, isto não as torna mais aceitáveis e, se o medo motivador principal for o "perigo islâmico", a separação não torna a situação melhor. Muitos muçulmanos já vivem em guetos, isolados sem sequer falar o francês e iniciativas que apenas separarão masi a população não irão surtir nenhum efeito senão o de ampliar o ódio entre as comunidades.

A integração é o caminho, mesmo que uma integração forçada, mas não com ataques contra a cultura alheia.

Claro, alguns casos não são passíveis de contemporização. No Canadá, certa vez, uma muçulmana se recusou a tirar o véu para ser fotografada para a carteira de motorista. Isto não é tolerável. O direito individual não pode passar por cima de uma obrigação comum a todos os demais cidadãos. Da mesma forma que, por segurança, ninguém pode se recusar a mostrar a cara a um policial ou a uma autoridade sob desculpa religiosa ou cultural.

A dificuldade maior neste ponto é conseguir separar quais situações são ou não aceitáveis para práticas culturais e religiosas em que o bem comum não seja posto em perigo e nem a individualidade seja desrespeitada.
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Update: Resposta do @iberemoreno ao post, em seu blog.
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quarta-feira, 31 de março de 2010

O nível do jornalismo nacional exemplificado

Há mais de um ano que venho constantemente criticando o jornalismo brasileiro. Veja, Folha, Globo, Estadão... Basicamente todos os grandes meios de comunicação brasileiros assumiram um caráter golpista e passaram a agir como o PIG, Partido da Imprensa Golpista. Mas hoje tive uma (in)grata surpresa ao ver que este tipo de jornalismo não é algo que é simplesmente "imposto" aos jornalistas. Não se trata apenas de uma direção viciada, nas mãos de Otavinhos da vida que impõem uma agenda aos demais.

Claro, temos Reinaldos Azevedos e Diogo Mainardis como bons exemplos do lixo jornalístico, mas ainda encaro o primeiro como um personagem e o segundo como um doente mental, difícil levar em consideração ou acreditar na seriedade de ambos. O Mídia Sem Máscara dá no mesmo, a TFP manda lembranças.

Meia e volta nos deparamos com Dimensteins e Boris Casoy's da vida, seres lamentáveis, irremediáveis, mas eu ainda pensava que este tipo de coisa se limitava ao alto escalão, aos que dão as cartas. Engano meu.

O grotesco se espalhou e entranhou em todos os níveis. Hoje (ontem), a surpresa. O @diegocasaes me passa um tuíte que, ao abrir, me senti enojado:

@paulojornalist: Pq todo terrorista é mulçumano?

Como tenho gosto pelo perigo, fui fuçar um pouco mais e o que vejo?

@paulojornalist: Alguém ve um mulçumano fazendo alguma coisa pela paz mundial?
@paulojornalist: muitos paises tem medo de se manisfestar abertamente contra esses ataques com medo.
@paulojornalist: só causam destruição e terror
@paulojornalist: muita gente fica defendendo, mas quando um parente seu for morto por um homem-bomba, não chore .
@paulojornalist: O presidente russo, Dmitry Medvedev, quer caçar os terroristas mulçumanos? é facim facim
@paulojornalist: taca fogo nas mesquitas
@paulojornalist: coloca racuminho nos buracos e dos guetos
@paulojornalist: E o Lula e Dilma ficam de beijos e abraços com esses elementos nefastos.


Falamos de um jornalista que descreve a si mesmo como "Jornalista, Radiorrepórter, Especialista em Gestão da Comunicação Organizacional, Media-training, Auditor das Iso’s 9001, 14001 e 18001.".

É o retrato do que virou, hoje, o jornalismo (sic) brasileiro. Ignorante, falso, mentiroso, deturpador, intolerante e preconceituoso.

Não é à toa que ao abrir um jornal os Palestinos são sempre culpados e Israel o paraíso, o Irã é o demônio, Cuba é assassina e as Damas de Branco - junto com Posada Carrilles - heroínas... Para a mídia, ainda, Serra é uma espécie de Deus que pune os infiéis: Professores, estudantes, trabalhadores, pobres.... Enquanto Lula, em tudo que faz, está errado - ainda que, ao contrário do PIG nacional, lá fora as opiniões sejam diametralmente opostas.
  
Mas deixo claro uma coisa: Minha crítica não está direcionada a este jornalista em particular. Ele é apenas mais um. Mais um que compra o discurso midiotizado, enlatado, burro e tendencioso da mídia e o reproduz como se fosse verdade.


E, através de gente como ele que milhões de pessoas se informam (sic) diariamente. É graças à jornalistas (sic) ao estilo Mirian Leitão, Dimenstein, Casoy, Bonner e tantos outros que a nossa imprensa caminha para o buraco, virou apenas lixo.


Pode parecer exclusividade deste jornalista tamanho desconhecimento de fatos, história e realidade, mas demonstrações claras de rascismo, de ignorância histórica e factual, de má fé, preconceito e intolerância são diárias. 

É Casoy atacando Garis, Lucia Hipólito culpando os pobres pelo blecaute do ano passado, O PIG em geral atacando os professores por terem apanhado da PM e estarem protestando contra Serra - Política, dizem! - ou ainda os pseudo-analistas louvando meia dúzia de mulheres cubanas insatisfeitas e fingindo não ver as centenas que realizam contra-marcha contra estas...

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