Considero ainda hoje as análises feitas
sobre o Islamismo extremamente “orientalistas”, para citar Said. O
cristianismo acaba sendo criticado, mas de forma mais branda, afinal,
somos herdeiros desta cultura, a conhecemos muito bem. Mas já aquilo que
desconhecemos sempre parece mais radical, mais terrível, mais grotesco e
perigoso. Nada mais falso.
Minha resposta foi dada, enfim.
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Recomendo vídeo postado no Bule Voador sobre as interpretações incorretas no Corão e o preconceito que existe contra muçulmanos e sua religião.
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Mas eis que, em 20 de março, Eli Vieira escreve um post para o excelente blog ateísta Bule Voador rebatendo minha posição e, em conjunto, criticando também a posição de Bruno Cava sobre o assunto.
Um post muito bom, mas, em minha
opinião, ainda impregnado do mesmo orientalismo de outro ator e,
finalmente, com os mesmos preconceitos comuns a muitos ateus – admito
também ter alguns, obviamente – quando o assunto é a religião e suas
práticas.
Concordo que a religião, em si, deva ser
fruto dos interesses de uns dominarem os demais, mas passados séculos e
milênios, ela adota características próprias e se descola mesmo da
figura de líderes ou liderança, passando a permear as vidas dos
indivíduos. Mais que combater, é preciso conscientizar. Não
estigmatizar, mas matizar. Em muitos casos falamos do norte, do elemento
norteador, do fundador da moral e mesmo pai da ética dos seres humanos,
algo que vai muito além da mera religião, do mero ato de se respeitar a
um superior supostamente emissário ou intermediário de um deus.
Religião é muito mais um instrumento nas
mãos de homens, mas também o cimento que deu origem às bases da
sociedade – não sem críticas, não sem evolução, oposição e mesmo
subversões.
Enfim, eis minha resposta ao Eli:
Muito interessante, mas ao menos para a
“minha” parte, reafirmo o que havia dito antes. Em primeiro lugar,
“livros sagrados” são nada mais que passíveis de interpretação. São
livros feitos em determinada época, com linguagem e intenções de época
que devem, enfim, ser interpretados continuamente. Oras, se existem
muçulmanos moderados (penso que a maioria), que discordam da
interpretação de radicais, logo, estamos diante de um livro em que um
grupo de pessoas interpreta da forma A, e da forma B.
A questão como eu havia dito, volta à
interpretação feita, à leitura feita. É possível apontar passagens da
bíblia (especialmente no Antigo Testamento) em que o teor e conteúdo
são muito semelhantes aos do Corão, lembrando que o Corão bebe da fonte
judaico-cristã diretamente e jamais foi negado o fato.
Mas, quantos cristãos efetivamente
seguem estes preceitos “atrasados” encontrados na Bíblia? Temos até
nosso grupo de fanáticos católicos da Opus Dei que se martiriza e mesmo
pastores charlatões que interpretam a bíblia de sua forma deturpada e
roubam dos fiéis, vide IURD, Silas Malafaia e cia. Interpretam da forma
que querem, assim como muitos fundamentalistas islâmicos.
Religião em si é supremacia. Se você
acreditam no deus A, logo, o deus B, C e D são inferiores, ou melhor,
nem existem. Você está certo, é superior. Esta é premissa básica de
qualquer religião, logo, não é estranho haver referências a como tratar
infiéis em livros sagrados, mas, devemos nos lembrar, livros escritos em
um período muito diferente do nosso.
Mas, na verdade, melhor exemplo para se
tratar do Islamismo e das deturpações feitas é lembrar da era de
iluminação islâmica, que durou até pelo menos a Reconquista. Se hoje
temos ciência, alfabeto, medicina, enfim, boa parte da nossa base de
pensamento, é porque os muçulmanos conservaram e desenvolveram
pensamentos complexos e os espalharam pelo mundo.
Os “infiéis” eram tratados com respeito e
apenas sofriam penalidades se desrespeitassem as leis que, como dentre
os cristãos, estavam subordinadas à religião. Mas, em geral, judeus e
cristãos viviam em perfeita harmonia com muçulmanos dentro de reinos
islâmicos.
Estamos, enfim, diante de interpretações
literais que se tornam deturpadas quando simplesmente apresentamos a
realidade, o momento histórico, a própria história do desenvolvimento
desta mesma religião e o que esta representou no passado e pode ainda
representar.
Sobre a sharia, é importante lembrar
que, como o próprio Corão, é passível de interpretações. Trata-se de um
código legal, logo, não pode, nem deve ser interpretado ao pé da letra
e, tampouco é universalmente aceito entre todos os muçulmanos como
válido.
Mas algumas comparações são interessantes:
O Islã tem uma lei própria, a lei da
Sharia, que explicitamente recomenda a morte como pena contra a
apostasia, e é devidamente aplicada em alguns países islâmicos.
Ora, os EUA, em sua legislação, mandam
para a morte pessoas com deficiência mental. A China tem punições
exemplares para ladrões – a morte – enquanto países como a Arábia
Saudita lhes cortam a mão. Pergunte a um texano médio sua opinião sobre e
ele defenderá a pena de morte com fervor quase religioso.
Mesmo em países islâmicos sob forte
presença da Sharia existem os que se opõem à sua aplicação de forma
literal, pois entendem que este não é o caminho.
Lembremo-nos então da Inquisição, da
aplicação de preceitos “cristãos” que incluíam a tortura, a fogueira, a
danação eterna… Algo que os EUA repetem hoje, com torturas e execuções
de prisioneiros. E pior, sequer tendo uma legislação para apoiar tais
ações!
É terrível que ateus sejam perseguidos
em países muçulmanos, mas também é terrível que ateus sejam vítimas de
preconceito no ocidente, nos EUA, mesmo no Brasil, por apenas quererem
ter o direito de não acreditar.
Gays também são perseguidos no Brasil,
no Irã, na Arábia Saudita e na maior parte do mundo. Independentemente
da religião dominante.
Difere a punição, permanece o mesmo tipo de preconceito.
Há séculos o cristianismo também era
indissociável da sociedade, da política, das leis e, com o tempo,
evoluímos. não sem conflitos, dor e mortes. Durante boa parte desta
época, ao menos da pior das épocas, os islâmicos viviam num período de
ouro.
É necessário não confundir religiões com
práticas, mas é verdade, as religiões são reflexo de suas práticas, mas
não necessariamente das práticas radicais e intolerantes de alguns.
Definiremos o Hinduísmo pelos fanáticos do partido Bharatiya Janata ou
por Gandhi, por exemplo? Os islamismo é melhor representado por
Ahmadinejad ou pelos jovens laicos que protestaram contra ele – e foram
mortos por isto?
Trata-se com desconhecimento e temor a
Ummah, que nada mais é que uma relação identitária de pertencimento a um
grupo. Oras, os cristãos católicos sentem-se parte de uma comunidade
ligada através do Vaticano. Os Ortodoxos de uma comunidade ligada a sua
sé, em Moscou. Todo presidente dos EUA encerra seus discursos louvando
não só a deus, mas àquilo que ele considera como uma comunidade cristão
e, falando em EUA, é esta comunidade com valores cristãos indissociáveis
que oprime afegãos, iraquianos, líbios, e mais meio mundo.
Mas esta ideologia de ódio e conquista,
caso dos EUA, é compartilhada por todos? Ou mesmo, quantos Ateus não
votam no Tea Party, nos Republicanos ou mesmo em Democratas que promovem
a guerra e o ódio?
Trata-se o muçulmano como terrorista
maluco e religioso fanático por explodir as torres gêmeas, mas os
cristãos no comando dos EUA não sofrem qualquer tipo de reprovação
quando explodem casas com mulheres e crianças no Afeganistão. Ou os
judeus israelenses quando massacram os Palestinos.
A passagem: “Que atualmente haja mais
muçulmanos obedecendo às passagens belicosas do que cristãos é tanto
acidente histórico quanto maior insistência e clareza do Corão nesta
mensagem de ódio, além de no ocidente a maior laicidade ter sido uma
conquista dos valores seculares promovidos concomitantemente à revolução
científica que nos levou de uma expectativa de vida de 30 anos para uma
de 70.” É incorreta.
Não se trata de maior ou menor clareza,
mas sim de transformações históricas, que passam pelas Cruzadas e
especialmente pela Reconquista, por uma interpretação de alguns líderes
muçulmanos de que as derrotas eram culpa de um afastamento de Allah.
Tudo isto culmina com o fim do Império Otomano, a derrota final dos
islâmicos frente aos cristãos que, não contentes em destruir seu
Império, ainda os desmembra em fronteiras artificiais, incitando ódios
tribais e desrespeitando as tradições locais.
Durante a idade das trevas no ocidente, o oriente vivia seu iluminismo.
Uma parte considerável de cristãos não
se importa que se faça troça com o Papa, mas outra se importa. Uma parte
dos cristãos não se importa com a prática do Aborto, até a defenda, mas
uma minoria estridente não se limita a protestar, mas chega ao ponto de
matar – vide casos documentados nos EUA.
Muitos muçulmanos – conheço vários – não
deram a mínima para os desenhos de maomé, até riram! Não são fanáticos.
Lembre-se dos protestos feitos por vários grupos cristãos contra
exposições de imagens de Cristo ou de Nossa Senhora em poses
não-ortodoxas ou em situações constrangedoras. Muitos não ligaram,
outros tantos protestaram e até conseguiram proibir exposições.
Vamos dar uma olhada nas seitas cristãos
que levam centenas e até milhares à morte. Jim Jones, os fanáticos do
Reverendo Moon e tantas outras seitas, até tupiniquins, como as do bispo
Macedo, que enganam e roubam milhões não só no Brasil, mas na África,
nos EUA…
Mas, ainda assim, a maioria é laica, a
maioria talvez seja até progressista em diversos aspectos. Mas, mesmo
dentre os conservadoras, uma imensa parcela nem se importa com religião,
mas com a base fundacional da sociedade como eles enxergam, permeados
por valores – ora filosofia – que vem de fonte religiosa. Oras, temos
ateus criminosos, ateus conservadores, ateus progressistas,… Culpar a
religião em si pelos males do mundo é o mesmo que culpar a não-religião
pelos ateus que cometem crimes, por exemplo.
Devemos, pois, entender a religião como
um pano de fundo, mas são as práticas, o USO desta religião que, trazem
os problemas. Assim como o uso de ideologias por grupos assassinos, por
pessoas mal intencionadas.
Religião, ideologia, filosofia, são
todas ferramentas de fanáticos. Basta algum querer usá-las. Religião ou
filosofia, uma idéia na cabeça, um dogma ou uma certeza, todos são
possíveis instrumentos para ódio, guerras e dor. Escolham.
As práticas dizem muito sobre a religião, mas devemos ter claro quais práticas estamos olhando.
O fanatismo independe de religião ou mesmo de ideologia. Mas é potencializado por ambas, conjunta ou individualmente.
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Publicado originalmente no Bule Voador sob o nome "As práticas dizem muito sobre a religião, mas devemos ter claro quais práticas estamos olhando"
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