RESPONSABILIZAÇÃO
- UM SILÊNCIO CRIMINOSO
OS
DIREITOS HUMANOS EM JOGO NO BRASIL
Por
Marcelo Zelic *
Após
14 anos tramitando na Organização dos Estados Americanos (OEA), coube ao governo
da presidenta Dilma Rousseff cumprir a sentença condenatória, notificada em
14/12/2010 por alta instância jurídica de Direitos Humanos à qual o Brasil
responde, colocando um ponto final na discussão sobre a anistia, dada pelos
militares aos agentes públicos e civis envolvidos em práticas de prisão
arbitrária, tortura, estupro de prisioneiras, execução sumária e desaparecimento
forçado de opositores da ditadura militar de 1964-1985.
O
compromisso do país com os Direitos Humanos está em xeque se prevalecer no
governo a orientação de se cumprir quase
tudo
da
sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no Caso Gomes Lund e
outros (Guerrilha do Araguaia), que condenou o Brasil na OEA. Não se justifica a
atitude do governo em desconsiderar da sentença um dos pontos centrais da
jurisprudência deste tribunal internacional, que reverteu leis de auto-anistia
em vários de seus países membros e vale lembrar, organizou uma sessão específica
em San José da Costa Rica sobre a Lei
de Anistia no Brasil,
para fundamentar a sentença dada.
O
entendimento jurídico sobre a extensão da Lei nº 6.683/79, mudou
a partir de 14 de Dezembro de 2010,
firmado em jurisprudência internacional já consolidada pela OEA e referendada
pelo Brasil como país-membro, deixando sem valor as decisões nas diversas
instâncias internas que usam a Lei de Anistia, incluída a decisão do Superior
Tribunal Federal (STF) sobre a ADPF 153, para arquivar ações das mais variadas
natureza, impedindo a consecução da justiça no Brasil.
Os
juízes declararam que “as
disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de
graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção
Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um
obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a
identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou
semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos
humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil”,
que o Estado deve realizar "a
investigação penal dos fatos do presente caso (Guerrilha do Araguaia) a fim de
esclarecê-los e determinar as correspondentes responsabilidades
penais"
e que “são
inadmissíveis as disposições de anistias, as disposições de prescrição e o
estabelecimento de excludentes de responsabilidade, que pretendam impedir a
investigação e punição dos responsáveis por graves violações dos direitos
humanos, como tortura, as execuções sumárias, extrajudiciárias ou arbitrárias e
os desaparecimentos forçados”.
A
presidenta Dilma Rousseff e sua equipe de Ministros e Ministras, o Legislativo e
o Judiciário, não podem desconsiderar os termos acima da sentença, colocados que
o foram, de forma tão clara pelos magistrados da CIDH ao condenarem o Brasil.
Recentemente,
a Ministra Maria do Rosário expôs de forma velada as dificuldades do cumprimento
da sentença, ao dizer que "não podemos esquecer que há outros dispositivos na
decisão que merecem uma atenção também do Poder Legislativo e do Poder
Judiciário", acrescentando que o parecer da AGU diz respeito apenas à
"impossibilidade de modificar a decisão do STF" relativa a punição de
torturadores, buscando por uma pedra final sobre o assunto.
Marcio
Sotelo Felippe, ex-procurador geral do Estado de SP, no artigo STF,
Corte Interamericana e anistia: aspectos jurídicos
desmonta
este argumento refutando o ponto final no assunto e diz:
“Embora
a Corte tenha delimitado sua competência aos efeitos jurídicos pós-1998, em voto
apartado o juiz Caldas enfatizou aspectos do caráter imperativo das normas de
Direito Internacional dos Direitos Humanos independentemente da
convencionalidade. Lembrou que é irrelevante a não ratificação pelo Brasil da
Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e contra a Humanidade
porque ela não é criadora do Direito, mas meramente consolidadora. Desde
Nuremberg reconhece-se a existência de um costume internacional que remonta ao
preâmbulo da Convenção de Haia de 1907. Assim, prosseguiu, há um Direito que
transcende o Direito dos Tratados e abarca o Direito Internacional em geral,
inclusive o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Nenhuma norma de direito
interno pode impedir que um Estado cumpra a obrigação de punir os crimes de
lesa-humanidade "por serem eles insuperáveis nas existências de um indivíduo
agredido, nas memórias dos componentes de seu círculo social e nas transmissões
por gerações de toda a humanidade."
Em
artigo publicado logo após a sentença no
jornal Valor Econômico,
a jornalista Maria Inês Nassif aponta que :
“O
aparelho policial e militar foi altamente prejudicado pela presença de agentes
que se acostumaram a viver à sombra e acima da lei. Quando se fala em abuso
policial e do poder das milícias nas favelas do Rio, por exemplo, ninguém se
lembra que a origem dessa autonomia policial diante das leis e perante o resto
da sociedade remonta ao período em que o aparelho de repressão tinha licença
para sequestrar, matar e torturar sem se obrigar sequer a um registro policial.
E que a manutenção da tortura como instrumento de investigação policial existe,
atinge barbaramente os setores mais vulneráveis da população e continua não
sendo punido. A anistia a agentes do Estado tem se estendido, sem parcimônia,
até os dias de hoje”.
O
pronunciamento da AGU é tão somente uma tentativa de manobrar a opinião pública,
uma jogada de cena para justificar a inação do governo frente ao tema da
responsabilização. É fruto de uma estratégia irresponsável, por parte de setores
do estado brasileiro, que não pensa o país e está centrada em negar a
competência e as implicações constitucionais no ordenamento jurídico do Brasil
de sua adesão à CIDH, protelando os mecanismos da impunidade e criando com esta
negativa uma instabilidade jurídica que faz retroceder os direitos humanos no
país, servindo de estímulo para aqueles que hoje praticam arbitrariedades
iguais, pois sinaliza que sempre haverá a defesa dos mecanismos da impunidade,
uma vez que as decisões da OEA não possuem efeito interno no
Brasil.
Seguir
neste caminho será pactuar com o atraso e alinhar o estado brasileiro com os
crimes de lesa-humanidade praticados. Neste processo histórico por justiça e
verdade, tal posição além de expor os governantes e agentes públicos de hoje à
contestação por crimes pelo não cumprir a sentença da OEA, deixa o país em
situação desconfortável no plano internacional. Na América do Sul, os mais altos
tribunais judiciários da Argentina, Chile, Colômbia, Peru e Uruguai já
incorporaram os parâmetros ditados pela CIDH nessa matéria, a partir de
alterações efetuadas na legislação de anistia proposta pelos
executivos.
Pela
decisão da Corte Interamericana rever ou não a Lei de Anistia não está mais em
questão, pois já foi definido na sentença seu caráter de auto-anistia e sua
extensão, excluindo os agentes do estado e civis que cometeram crimes de
lesa-humanidade. Cabe a um governo comprometido com o Direito Internacional dos
Direitos Humanos como é o governo brasileiro, cumprir de forma integral a
sentença, que é definitiva e remover os obstáculos jurídicos desta auto-anistia,
que implicam em impedimentos ao devido processo legal.
O
ex-Ministro Eros Grau, ao expor seu voto, mostra que ao STF não há necessidade
de mudar sua decisão, apontando através de alteração da Lei 6683/79, o
legislativo federal como caminho e instância para corrigir sentença do Supremo
Tribunal Federal, diz ele:
“O
acompanhamento das mudanças do tempo e da sociedade, se implicar necessária
revisão da lei de anistia, deverá ser feito pela lei, vale dizer, pelo Poder
Legislativo, não por nós. Como ocorreu e deve ocorrer nos Estados de direito. Ao
Supremo Tribunal Federal --- repito-o --- não incumbe legislar.”
Para
o Estado brasileiro cumprir este ponto da sentença, caberá à presidenta Dilma
Rousseff enviar ao Congresso Nacional decreto-lei ou medida provisória em regime
de urgência, para ser votada dentro do prazo da sentença, dando nova
interpretação à Lei da Anistia baseada na decisão da CIDH, apontando o caráter
imprescritível dos crimes abordados e anexando a integra da condenação à lei,
como forma também de reparação. Se o governo for esperar a votação do PL da
Deputada Luiza Erundina nos trâmites arrastados do Congresso Nacional,
chegaremos em 14/12/2011, sem cumprir a sentença inteira e o país estará
vulnerável a sanções por parte da OEA, por desrespeito aos Direitos
Humanos.
Não
será por desconhecimento da justeza da sentença da CIDH ou por discordar dela,
que o governo da presidenta Dilma Rousseff descumprirá este ponto da condenação,
caso vejamos confirmada a opção pela omissão. A presidenta quando Chefe da Casa
Civil enviou ao STF, em 4 de dezembro de 2008, parecer favorável à mudança da
Lei de Anistia nos seguintes termos:
“Revela-se
impossível sustentar, portanto, qualquer tese no sentido de que delitos comuns
praticados por agentes do Estado contra opositores políticos enquadram-se no
conjunto de anistiados pelo termo crimes políticos do artigo 1º da Lei da
Anistia. Os crimes de lesão corporal, estupro, atentado violento ao pudor,
homicídio, ocultação de cadáver e tortura praticados por agentes do Estado não
são crimes políticos sob a ótica dos conceitos amplamente aceitos e adotados
pela doutrina e pela jurisprudência”.
Para
o Brasil, cumprir a sentença no que diz respeito a este ponto, fortalece nossas
instituições, pois revendo a legislação de 1979, além de remover da Lei de
Anistia parte do entulho autoritário que ainda segue como norma legal no
judiciário, desobstrui a justiça e proporciona aos familiares e vítimas
exercerem o direito de acionar os tribunais. Educará a sociedade e seus cidadãos
ao reparar a verdade dos fatos históricos, indo de encontro à intenção dos
juízes quando declaram que “esta Sentença constitui per
se uma
forma de reparação”.
Estabelece
a verdade para a sociedade como por exemplo, redefinindo os argumentos
falseados
em vários dos votos majoritários proferidos no julgamento da ADPF 153 no
STF,
que negando registros contidos nas proprias atas
da comissão
presidida pelo Senador Teotônio Vilela, defenderam a tese da existência de um
acordo harmonioso para termos a lei de anistia, negando não só os registros
oficiais produzidos durante a elaboração da lei 6683/79, como outros
tantos
que refutam a versão de pacificação do país ocorrida com a promulgação da
Anistia.
Ao
longo destes 32 anos da promulgação da Lei de Anistia, os familiares de mortos e
desaparecidos, ex-presos e ex-presas políticas, bem como diversas entidades da
sociedade civil e de direitos humanos, vêm lutando pelo esclarecimento dos fatos
e a responsabilização dos agentes públicos envolvidos nestes crimes de
lesa-humanidade ocorridos durante a ditadura militar. A decisão que condenou o
Brasil na CIDH é resultado desta consciência, trabalho e luta, só por respeito a
este esforço cidadão, deve ser cumprida integralmente.
Os
sete juízes estrangeiros e o juiz ad hoc (determinado) brasileiro a quem o Grupo
Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, a Comissão de Familiares de Mortos e
Desaparecidos e o CEJIL foram reclamar justiça em 1996, entenderam que o Estado
brasileiro violou os direitos estabelecidos nos artigos 3 (reconhecimento da
personalidade jurídica), 4 (vida), 5 (integridade pessoal), 7 (liberdade
pessoal), 8 (garantias judiciais), 13 (liberdade de pensamento e expressão) e 25
(proteção judicial) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em conexão
com as obrigações previstas nos artigos 1.1 (obrigação geral de respeito e
garantia dos direitos humanos) e 2 (dever de adotar disposições de direito
interno) da Convenção.
Determinaram
por unanimidade ao Estado brasileiro cumprir 14 pontos, dos quais
destacamos:
-
O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 256 e 257 da presente Sentença.
-
O Estado deve realizar todos os esforços para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, identificar e entregar os restos mortais a seus familiares, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 261 a 263 da presente Sentencia.
-
O Estado deve realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a respeito dos fatos do presente caso, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 277 da presente Sentença.
-
O Estado deve continuar com as ações desenvolvidas em matéria de capacitação e implementar, em um prazo razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 283 da presente Sentença.
-
O Estado deve adotar, em um prazo razoável, as medidas que sejam necessárias para tipificar o delito de desaparecimento forçado de pessoas em conformidade com os parâmetros interamericanos, nos termos do estabelecido no parágrafo 287 da presente Sentença. Enquanto cumpre com esta medida, o Estado deve adotar todas aquelas ações que garantam o efetivo julgamento, e se for o caso, a punição em relação aos fatos constitutivos de desaparecimento forçado através dos mecanismos existentes no direito interno.
-
O Estado deve continuar desenvolvendo as iniciativas de busca, sistematização e publicação de toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia, assim como da informação relativa a violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar, garantindo o acesso à mesma nos termos do parágrafo 292 da presente Sentença.
Em
fevereiro a OAB enviou ofício à presidenta Dilma onde aponta que: “as
determinações [da corte] são de cumprimento obrigatório por todos os agentes
públicos do país, sem a possibilidade de rediscussão ou revalidação interna de
seu valor. O eventual descumprimento de quaisquer das determinações da sentença
da corte representará um retrocesso sem precedentes na evolução dos direitos
humanos no Brasil e nas Américas”.
Que
o governo se paute não pelo argumento do revanchismo, pois não é disso que versa
o tema como querem as forças a serviço da barbárie e da impunidade, mas pelo
Direitos Humanos e pelo dever ético de todo país que respeita a justiça, a
verdade, a memória, a educação, sua história e seus cidadãos.
A
Comissão da Verdade é importante e é retratada na sentença, “o Tribunal valora a
iniciativa de criação da Comissão Nacional da Verdade e exorta o Estado a
implementá-la”, mas sem a revisão da lei da Anistia é cortina de fumaça. É dever
da cidadania fazer ecoar nos quatro cantos do país um brado: Cumpra-se
por inteiro a sentença da OEA.
O
governo da presidenta Dilma Rousseff dependendo do caminho que escolher, poderá
virar uma página de nossa a história e fazer avançar os Direitos Humanos no
país, consolidando seu governo nos ideais que sempre se pautou. Caso decida
omitir-se frente aos desafios de se cumprir a sentença inteira, diminuirá seu
papel na história.
* Marcelo Zelic é Vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP, membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e Coordenador do Projeto Armazém Memória
mzelic@uol.com.br
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