sábado, 26 de abril de 2014

Genocídio Armênio: 99 ANOS DE SOLIDÃO

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Heitor Loureiro, historiador,
doutorando em História pela UNESP-Franca

No clássico livro Cem Anos de Solidão, do escritor colombiano Gabriel García Márquez, falecido recentemente, há uma passagem sobre o massacre de três mil trabalhadores na fictícia Macondo, perpetrado pela poderosa companhia estrangeira responsável pela produção e exportação de bananas. Apesar do impacto da matança, o esforço do governo e da empresa para negar o crime fez com que a própria população da cidade não acreditasse no que havia ocorrido, tomando por louco o único que ousava tocar no assunto. Os perpetradores e os espectadores passivos, assim, venceram a batalha no campo da memória e escreveram a História ao seu modo, escolhendo o que seria lembrado e o que seria esquecido.

A obra fantasiosa de Márquez, nessa passagem, é baseada em um fato real: o massacre de Aracataca, em 6 de dezembro de 1928, quando trabalhadores e sindicalistas da United Fruit Company promoveram uma greve de quase um mês para reivindicar melhores condições de trabalho. O movimento foi debelado com violência pelas forças de segurança locais, deixando centenas de trabalhadores mortos.

Infelizmente, o que García Márquez escreveu sobre o evento ocorrido em sua cidade natal, transportando-o para a fantástica Macondo, não ficou circunscrito à Colômbia ou à América Latina. O modus operandi de execução de um grupo-alvo já havia ocorrido alguns anos antes, no longínquo Império Otomano, contra as minorias cristãs que viviam dentro de suas fronteiras, sobretudo, os armênios.

Em 24 de abril de 1915, o Comitê União e Progresso, agrupamento político chauvinista e radical que tomou o poder no Império Otomano, ordenou a prisão e deportação de centenas de intelectuais e políticos armênios na capital Constantinopla. Na noite de Páscoa, essas lideranças da comunidade armênia otomana foram retirados de suas casas e colocados em comboios ferroviários rumo à prisões no interior. Essa noite marcou o início do extermínio sistemático da população armênia do Império, que nos anos seguintes sofreu ocupações de suas vilas e cidades, expropriações de seus bens e deportações rumo aos desertos da Síria ou ao Rio Eufrates, em um processo no qual os historiadores calculam que entre 1 e 1,5 milhão de armênios tenham sido mortos, o que significa algo entre 50 e 75% da população armênia otomana. Para uma nação mergulhada numa grave crise econômica e prestes a se esfacelar, o extermínio dos armênios significaria a transferência de grande parte da economia do país para as mãos dos turcos e outros povos muçulmanos, ao mesmo tempo em que tornaria o Império mais homogêneo, sem o elemento cristão. Eram tempos em que ideologias nacionalistas, higienistas e a ideia idílica de um retorno à “era de ouro” estavam na ordem do dia.

Embora tenha causado grande comoção e mobilização no ocidente na época, o plano de extermínio dos armênios foi enterrado junto com o nascimento da moderna República da Turquia, pelas mãos de Mustafá Kemal (posteriormente nomeado Atatürk), em 1923, quando um tratado assinado entre os kemalistas e as potências ocidentais não mais previa a devolução dos territórios da Turquia ocidental aos armênios, sendo estes obrigados a se contentar com a diminuta República Socialista Soviética da Armênia. Com a Turquia, se consolidava uma política estatal de negação do ocorrido com os armênios, pois admitir os massacres planejados e sistematizados pelo governo otomano seria reconhecer que a moderna nação turca estava alicerçada nas propriedades, terras e, sobretudo, vidas de mais de um milhão de pessoas.

Quando o conceito de genocídio foi criado, os armênios pleitearam o reconhecimento mundial para o que havia acontecido a partir de 1915 também ser classificado como tal, principalmente após grande mobilização na Armênia Soviética em 1965. Como consequência, vários países e entidades internacionais reconheceram que os massacres perpetrados contra a população armênia no Império Otomano constituíram sim um genocídio. Não obstante, a Turquia fortaleceu sua posição negacionista, patrocinando eventos, debates e publicações para provar que as mortes foram consequências da I Guerra Mundial e que não havia uma intenção de exterminar a minoria armênia. EUA, Israel, Grã Bretanha e outros aliados estratégicos do Estado turco mantiveram um ensurdecedor silêncio, apesar da forte pressão política das comunidades armênias espalhadas pelo mundo.

O fato é que na primeira década do século 21 algumas coisas mudaram. Cada vez mais países reconhecem a existência do genocídio e convocam a Turquia a enfrentar o próprio passado. Após o assassinato de um jornalista turco-armênio em Istambul em 2007, a população turca também iniciou um processo de questionamento das instituições nacionais que culminou nos protestos da Praça Taksim no ano passado. Muitos intelectuais turcos, hoje, falam abertamente que houve um genocídio e que a Turquia deve se retratar. A comunidade internacional também não consegue manter o silêncio. Por mais que os EUA não reconheçam, a maior parte de seus estados já o fez. Em países como França, há discussões sobre legislações que criminalizem a negação do genocídio armênio, a exemplo do que ocorre com o Holocausto.

O primeiro ministro turco Recep Tayyip Erdoğan enfrenta a pior crise política de seu governo. Abandonado por aliados históricos e visto com desconfiança por vários setores da sociedade turca, Erdoğan não abandona a postura ofensiva para se defender das críticas e denúncias. Sobre o genocídio armênio, não é diferente: a um ano do centésimo aniversário do genocídio, o político já se articula com aliados como o Azerbaijão para mitigar os eventos que a República da Armênia e a diáspora farão para rememorar o ocorrido. Assistiremos a uma guerra no campo de batalha da memória em 2015.

Erdoğan está em xeque pelos movimentos sociais turcos, pela oposição e pela sociedade internacional. A sistemática política de negação da Turquia cada vez mais tem se confundido com as ações polêmicas e duvidosas do primeiro ministro. A única saída possível é enfrentar a própria História e propor soluções para a reconciliação nacional observando o tripé “justiça, memória e verdade”. Do contrário, a Turquia ficará isolada, negando o inegável e o evidente, comemorando em 2015 seus “cem anos de solidão” no que diz respeito aos direitos humanos.

*Uma versão resumida do texto foi publicado pelo Estadão.
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