segunda-feira, 20 de maio de 2013

A Virada é cultural, mas o jornalismo é só preconceito

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O show de preconceito da mídia brasileira parece não dar trégua.

Escrevi na semana passada para o Jornalismo B um artigo criticando a cobertura da mídia sobre dois casos de violência semelhantes (com um infelizmente resultando na morte da vítima), mas tratados de forma diferente de acordo com a (suposta) classe das vítimas.

Agora, novamente, um show de preconceito chega até nós através da Folha e do Estadão. No caso da Folha trata-se mais de um negacionismo estúpido, já o Estadão conseguiu ultrapassar todos os limites do aceitável, faltava apenas dizer que quem ouve hiphop é bandido e ponto. Foi por pouco.

Vejam as duas imagens à seguir:


Na matéria assinada por Clarice Cudischevitch, lê-se apenas "A Polícia Militar não registrou nenhuma ocorrência durante a apresentação dos Racionais MC’s, apesar do consumo de maconha por pessoas na plateia. A Praça Júlio Prestes ficou completamente suja após o show.".

Nunca, em tão poucas linhas, pude ler tanto preconceito escancarado (a jornalista provavelmente pensou estar escondendo bem seus preconceitos, mas não conseguiu).

Porque o show dos Racionais é notícia por NÃO ter acontecido nada? Tivemos diversos casos de arrastões, eu mesmo presenciei o rescaldo de um durante o show do Sidney Magal no Arouche e estive a 5 passos de outro, na República, umas 2h depois, mas a notícia, em se tratando de um grupo da periferia, é não ter acontecido nada.

De fato ha alguns anos houve confusão em show de HipHop, o que levou o higienista Kassab a vetar palcos com o estilo desde então, como se proibir um estilo musical fosse a solução para a violência e a criminalização da periferia. Não vou entrar em detalhes sobre causas e a participação da PM naquele episódio, mas recomendo que quem se interessar corra atrás.

Mas reparem que não há sequer uma linha para comparar com o que aconteceu anos atrás, para ao menos tentar amenizar a situação. A notícia, de DUAS LINHAS e um vídeo, se limita a reportar que nada aconteceu.

E piora - sim, é possível.

Já que não aconteceu nada e fica feio noticiar o nada, vamos acrescentar que pessoas fumaram maconha e que o chão ficou sujo.

Oras, esse "pessoal da periferia" deve ser "tudo" um bando de maconheiro, não é mesmo?

E notem o "apesar", presente no curto e lamentável texto.

Pois é, mas o que não faltou em TODOS os shows que fui foi o cheiro de maconha e, claro, muito lixo pelo chão. Digno de nota, aliás, foi a quantidade insuficiente de lixeiras, especialmente em volta da Virada Gatronômica e as que tinha estavam transbordando.

Ou seja, colocar como algo digno de nota a "sujeira" após o show do Racionais é claro preconceito, já que em TODOS os shows com uma quantidade grande de pessoas no entorno ficava podre. Foi assim no show da Daniela Mercury, no do Sidney Magal (dois dos shows que assisti)...

Maconha e sujeira foram lugar presente na Virada, mas só é notícia quando a periferia vem ao centro.

Na matéria da Folha, assinada por Ana Krepp e Lucas Nobile, o absurdo fica por conta da crítica nem um pouco velada ao justo protesto do público contra o genocídio da população negra na periferia.

É óbvio que agrande mídia irá negar de todas as formas que isto aconteça. Tão ligados à Ditadura, não poderiam concordar que o assassinato indiscriminado de pobres nas periferias seja algo alarmante. É, no fim, apenas uma "provocação" à gloriosa Polícia Militar que, aliás, sequer fez seu trabalho na Virada, e deixou rolar solto assaltos e arrastões.

E não digo "deixaram rolar" levianamente. 

Em toda a distância entre o Largo do Arouche e a República não havia um único PM na madrugada do sábado para o domingo. Apenas no Largo e sumidos em algum lugar da República, longe de nossas vistas. Presenciei, há menos de 10 passos, um arrastão na República e não se via policial. Nem durante e nem depois enquanto as pessoas gritavam por socorro e eram roubadas.

Um dos assaltados tinha perdido tudo. Chavez do carro, celular, carteira, documentos... Corria junto conosco, eu, minha esposa e uma amiga, tentando encontrar um policial. E não encontramos nenhum. 

Do Arouche ao Metrô República. Nada.

Onde eu via PM estavam batendo papo ou sentados em suas viaturas. Alguns falam até em uma ação pensada da PM em fazer vista grossa aos assaltos. Eu não duvidaria, muita gente reclamava de arrastões até próximos à viaturas da PM e que os policiais nada faziam.

O João Ricardo comentou no Facebook:
Terra de ninguém, corredor polonês, zona de guerra, sei lá qual o termo mais adequado que ouvi hoje pra descrever o centro de SP na última madrugada durante a Virada. Presenciei vários arrastões na região da Luz, desde gigantes com 50 pessoas até os menores. Vi a poucos metros de mim cinco caras derrubar um carinha que foi chutado, saqueado, humilhado, uma cena que me impressionou muito. É verdadeira também a afirmação sobre a inércia da polícia em relação aos arrastões, vi isso com meus olhos e ouvi relatos de outras pessoas que corroboram, mas também não sei direito como julgar - é sabido que a PM odeia a Virada Cultural justamente porque ela cria condições em que o policiamento se torna extremamente complicado, gerando cobranças que ela se vê incapaz de cumprir.
E é preciso um adendo: A Virada é um evento municipal, sob responsabilidade do Haddad, mas o policiamento é estadual, responsabilidade da PM e do Alckmin. Não adianta querer culpar a prefeitura pelo serviço de porco do governo do estado. E, também, não são aceitáveis as acusações sem qualquer prova, apenas baseadas em vitimismo típico de petistas, de que a PM fez corpo mole com o objetivo de prejudicar a prefeitura, logo, Haddad.

Mas, voltando ao tema central, sem dúvida, "provocação" é protestar contra não só a ineficiência de um lado, mas contra a eficiência cruel da PM em assassinar jovens e negros nas periferias.

Enfim, são apenas dois exemplos - de muitos, constantes - de um jornalismo canalha, marrom, preconceituoso, que tem um lado claro, e não é o do povo.

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Artigos na mesma linha:

No jornalismo B, sobre o preconceito de classe e contra a periferia - O jornalismo de classe e a escolha da notícia
No Observatório da Imprensa, sobre a cobertura de Belo Monte e movimentos sociais - Jornalismo mandou lembranças
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