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Os debates e discussões sobre a Copa, muitas vezes acalorados e polarizados, me lembraram uma aula que tive o prazer de ter com um professor da República Democrática do Congo, sobre integração africana. Ele começou a aula falando sobre os afro-otimistas e os afro-pessimistas.
Os primeiros, um grupo mais reduzido, normalmente pessoas de ONGs e missionários religiosos, exaltam as maravilhas do continente e das culturas africanas, as características de seus povos, o futuro brilhante que o continente tem pela frente. Os segundos, infelizmente mais abundantes do que gostaríamos, normalmente líderes políticos e acadêmicos europeus, profetizam que a África é um continente fadado ao fracasso, ao subdesenvolvimento e à pobreza, como se pode imaginar, usando discursos e argumentos racistas e etnocêntricos.
O meu professor, uma figura bastante reconhecida no seu país e em outros países africanos, se declarou um afro-realista, como uma pessoa que conhece bem os problemas e desafios desse continente tão castigado por séculos de colonialismo e exploração, e conhece bem também suas potencialidades, sua enorme riqueza cultural e social, sua natureza prodigiosa, que trouxe grandes desafios para o ser humano, desde o início, o início de todos nós (afinal, todos viemos da África). Ele destacou a herança maldita do colonialismo que infelizmente ainda persiste na maioria dos países africanos, e afirmou sua firme esperança num futuro melhor e mais justo para o povo africano, sua esperança baseada no enorme capital humano e cultural do continente, que precisa se recuperar de tantos anos de exploração e do cruel colonialismo.
Voltando ao Brasil, me considero bem próxima ao pensamento do professor democrático congolês. Muitos no Brasil parecem querer negar nossos problemas, parecem querer varrê-los para debaixo do tapete. Nos debates sobre a Copa, se ressentem da onda de críticas contra o evento (de qualquer que seja a origem, por certo há críticas bastante questionáveis). Reafirmam a #CopadasCopas, qualificam qualquer crítica como síndrome de vira-lata.
Querem calar as vozes que apontam para a corrupção, para as remoções, para a violência policial que já ceifou muitas vidas, sim, no contexto do evento (poderiam ser ceifadas em outros contextos, mas sabemos do que estamos falando, e as comunidades atingidas demonstraram muito bem isso com o lema: A festa nos estádios não vale as lágrimas nas favelas), além da incrível repressão policial às manifestações, com a prisão de ativistas em procedimentos totalmente ilegais (com claras irregularidades por parte da polícia e também do judiciário). Os otimistas que não toleram a dissidência querem afirmar e propagandear o Brasil que dá certo, o Brasil bonito, a festa, em troca de esconder, debaixo do tapete, a barbárie diária de massivas violações aos direitos, principalmente dos mais desfavorecidos, inclusive o básico direito à vida.
Já vi gente dizendo inclusive que críticas à organização do evento são racistas, com as comparações com países desenvolvidos. Ora, é alguma mentira que o Brasil tem mais corrupção que outros países que conseguiram avançar mais em seus mecanismos democráticos? Não coloco nenhum país em pedestal, muito menos na atual altura do campeonato, em que a crise nos países desenvolvidos demonstra a insustentabilidade total do sistema capitalista global, demonstra os limites dos avanços democráticos alcançados nesses países. Também acho que temos que valorizar nossa cultura, nossa sociedade, nossas grandes vantagens. Temos uma incrível sociodiversidade, uma cultura riquíssima, vinda do encontro de tantas culturas.
Nasci em São Paulo e me sinto privilegiada por ter crescido no cosmopolitismo da cidade. É por isso mesmo que acredito na importância da luta contra todas as barbáries e retrocessos que estamos vivendo. Síndrome de vira-lata mesmo é querer negar os próprios problemas, viver de fantasia e querer apagar a dor dos demais, é assumir um otimismo festivo que não quer saber dos problemas, aquela festividade dos que não querem que essa gente que conta os mortos atrapalhe a alegria (e nada contra quem está curtindo a Copa, muito pelo contrário, há coisas inclusive bem interessantes na Copa, o problema é os que querem curtir e não querem ouvir nenhum outro ruído, os que ainda querem calar os dissidentes, e sim, infelizmente há muitos).
Analisando outro caso de racismo em âmbito internacional: as perspectivas racistas, xenófobas e etnocêntricas em relação ao mundo árabe e muçulmano são muito disseminadas. Algumas inclusive do meu ponto de vista muito toleradas em âmbito acadêmico (assim como os afro-pessimistas). Os propagadores do "choque de civilizações" pintam os árabes como naturalmente beligerantes, lhes atribuem características essenciais, inferiores à cultura cristã ocidental. Quem conhece um pouco de história e das culturas árabes e muçulmanas sabe como isso é uma mentira completa, fruto de mentes ignorantes e fanáticas.
Quem conhece história sabe que enquanto a Europa estava mergulhada nas trevas da Idade Média, as ciências e as artes floresciam em países do Oriente. Quem conhece um pouco sobre política internacional sabe que a radicalização de grupos islâmicos se deve, em grande medida, às políticas desastrosas dos Estados Unidos durante a Guerra Fria, e marcadamente depois do 11 de setembro. Quem conhece todo esse contexto, porém, não irá fingir que o Oriente Médio é hoje um paraíso. Quem conhece as causas e raízes dos conflitos no Oriente Médio não vai querer tapar ou negar que, muito tristemente, a região está hoje à beira de um conflito generalizado, com parte da sua população sendo submetida à um sofrimento extremo.
Acredito que a verdadeira luta por um mundo melhor prescinde de uma verdadeira disposição para encarar a realidade. Como lutar contra a opressão sem reconhecê-la? O imperialismo europeu e estadunidense ainda dominam o mundo, levaram à consequências desastrosas, com as quais lidamos até hoje. Promoveu a escravidão, genocídios, massacres, sociocídios (onde o tecido social e as bases morais e culturais de uma sociedade são destruídas, muitas vezes com gerações e gerações submetidas à exploração e à conflitos). O sistema internacional ainda é baseado em grande medida nessas antigas ordens, embora tenha mecanismos e uma aparência de consenso e democracia, e embora tenha, de fato, mecanismos democráticos (que infelizmente funcionam cada dia menos), e algum senso de humanitarismo.
O mesmo vale para o Brasil (e hoje as fronteiras entre o local e o global são cada vez mais tênues. Nossa situação é muito parecida à de muitos outros países, com repressão, militarismo, violência, desigualdades extremas, etc.). Os que querem esconder o sol com a peneira apenas contribuirão para a manutenção do status quo, esse status quo que tentam apagar (apagando, também, suas vítimas diárias). Talvez seja esse mesmo o objetivo destes. Prefiro seguir, como colocado nessa entrevista com Chomsky, uma esperança dissidente, que acredita na força dos que lutam diariamente, dos que atrapalham a festa, para um dia também poderem sorrir plenamente.
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O grande Plínio de Arruda Sampaio faleceu um dia após esta postagem ser feita e suas considerações finais durante o último debate para a presidência em 2010 caem como uma luva e nos faz pensar.