domingo, 2 de agosto de 2009

O Mito da Estabilidade do Cáucaso Norte (Trezentos)

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Post originalmente publicado no blog colaborativo Trezentos no dia 29 de julho.

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Esta é minha primeira postagem no Trezentos e este artigo busca ser um complemento ao post de ontem sobre a situação específica da Ingushétia e Chechênia que pode ser encontrado em meu blog neste link.

O post conta também com acréscimos de outro artigo sobre a Rússia de minha autoria, mais especificamente sobre a Máfia que tomou conta da Rússia e que vem sistematicamente assassinando ativistas de direitos humanos.

O título deste post é o mesmo da análise de Txente Rekondo, do Gabinete Basco de Análise Internacional (GAIN) que usei como base para escrever este artigo.

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Cáucaso Norte

Nesta região de extrema diversidade étnica convivem as repúblicas da Chechênia, Ingushétia, Daguestão, Karatchaievo-Tcherkássia e Kabardino-Balkária, todas de maioria islâmica, além da Ossétia do Norte, de maioria Cristã. A região é historicamente conflituosa, Ossetas e Ingushes já entraram em guerra por questões de fronteira, os chechenos já protagonizarma duas guerras sangrentas com os russos, o Daguestão vive em constante conflito étnico mas, nos últimos anos, um novo fator de tensão vem surgindo na região.

Ao longo da história a resistência à ocupação russa se deu estritamente em bases étnico-linguísticas e na história diferenciada e independente desses povos em relação à Rússia mas, nos últimos anos, e em especial depois do 11 de setembro e da derrota chechena nas duas guerras, o terrorismo de viés islâmico, Salafita, vem crescendo de forma assustadora.

Em meio à resistência e guerrilhas chechenas é possível encontrar um enorme contingente de muçulmanos de países do golfo engajados na luta pela criação não mais da República Chechena de Ichkeria, islâmica mas moderada, mas no Califado do Cáucaso.

Ao mesmo tempo em que cresce a repressão contra os ativistas de direitos humanos da região, crescem também os ataques à "autoridades" Russas ou cooptadas pela Rússia na região. O caso mais notável foi o ataque à bomba que quase tirou a vida do presidente da Ingushétia, Yunus-Bek Yevkurov, mas os ataques e assassinatos continuam e são cada vez mais audaciosos.

Até mesmo regiões relativamente calmas - se comparadas à Chechênia, Daguestão e Ingushétia - como a Kabardino-Balkária e Karatchaievo-Therkássia começam a assistir episódios de violência sectária.

Ramzan Kadyrov

Desde que assumiu a presidência da República Chechena, Ramzan Kadyrov vem patrocinando uma escalada de violência sem precedentes na região. Inegavelmente este homem é um dos maiores responsáveis pelo completo descontrole na região. Ramzan Kadyrov, filho de Akhmad Kadyrov, é um ex-rebelde que traiu a causa nacionalista e assumiu a presidência após o assassinato de seu pai, na época o presidente da Chachênia, nomeado por Putin.

Akhmat Kadyrov, pai de Ramzan Kadyrov foi o Mufti da República Chechena de Ichkeria, durante os anos noventa e durante e depois da Primeira Guerra Chechena. Já na época da Segunda Guerra Chechena, Kadyrov pai resolveu mudar de lado e apoiar o governo russo contra seus conterrâneos chechenos até que, em 2003, foi empossado como presidente por Putin, em troca de seus favores - delação, tortura, perseguição e mortes.

Kadyrov filho não é muito diferente de seu pai, também é conhecido por sua brutalidade e violência extrema no trato com rebeldes, pseudo-rebeldes e qualquer um que o afronte ou o desagrade, sendo responsável por perseguições, torturas e assassinatos diversos, como os das ativistas Natalya Esterminova, Anna Politkovskaya e do advogado Stanislav Markelov.

Um dos episódios mais marcantes da trajetória de Kadyrov na presidência Chechena - além do personalismo e brutalidade - foi a encomenda d o assassinato de seu ex-guarda-costas, Umar Israilov, que vivia no exílio na Áustria e se dedicava a denunciar seu ex-chefe. Agentes chechenos foram enviados para matá-lo, nada além de uma simples queima de arquivo.

Para mais informações sobre a situação dos direitos humanos e do assassinato de ativistas, vale uma olhada neste link.

Obviamente esta onda de violência e este crescimento do radicalismo islâmico na região não vem de graça, as razões são duas principalmente:

Em primeiro lugar, as sucessivas derrotas (senão a não complitude de seus objetivos e de suas reformas) das guerrilhas e da resistência local ao longo dos anos 90, mas não só, também o fracasso generalizado dos grupos de orientação marxista ou similar por todo o oriente médio e proximidades (notadamente na luta Palestina, como Fatah, FPLP, FDLP, etc), além do fracasso dos regimes "pan-arabistas" ao longo dos anos 60, 70 e 80 que culminaram com o surgimento e crescimento de grupos de caráter islâmico militante, como Hizbollah, Hamas e o crescimento acelerado e proeminência da Irmandade Muçulmana até, enfim, Talibã e Al Qaeda.

Ou seja, a idéia de guerriha com viés de esquerda, majoritariamente laica, não funcionou, ou ao menos esta é a visão corrente e propagada. Junte à isso as derrotas na própria região dos movimentos nacionalistas, e temos um problema. Se a ideologia fracassou, como voltar a agregar, a unir esforços em prol da independência?

Em segundo lugar o artigo do GAIN dá a deixa:

"El desempleo, la corrupción, la brutalidad policial, aderezado todo ello con grandes dosis de impunidad, las importantes bolsas de refugiados y desplazados son algunos de los factores locales que aportan mayores dosis de desestabilizad a la situación. La sensación entre buena parte de la población de que el ejército y la policía tienen vía libre para cometer todo tipo de atropellos contra la disidencia, empuja a muchos jóvenes a sumarse a los movimientos guerrilleros."

Juntando estes dois elementos, a falência da ideologia dominante os anos 60 aos 80 e o aumento da repressão, em parte pela própria ineficiência dos movimentos nacionalistas, or parte da Rússia, no caso estudado, temos o campo perfeito para a disseminação de uma ideologia extremista que deturpa os ensinamentos islâmicos e o utiliza como arma de ódio para a criação não mais de uma república baseada no componente étnico local, mas na religião, nos mandamentos supostos de deus.

Cabe ainda uma terceira razão ou elemento, a possibilidade de internacionalizar a luta e angariar maior apóio, melhorar a logística e conseguir maior visibilidade. Com o surgimento da Al Qaeda e de grupos de caráter islâmico a solidariedade e alcance entre eles cresceu de forma assustadora; Se até o começo dos anos 90 mal se ouvia falar em "terrorismo islâmico" - ainda que por vezes o termo seja absolutamente mal empregado, usado como arma de propaganda - hoje em dia é basicamente tudo que se houve.

Para além do perigo real do fanatismo religioso - que não é exclusividade islâmica - existe uma enorme máquina de propaganda por trás, controlada notadamente por Israel e pelos EUA.

akhmed-zakayev

Akhmed Zakayev, Primeiro-Ministro da República da Chechênia Ichkeria

Da Rferl chega a notícia de que representantes no exílio da República da Chechênia Ichkeria estão tentando entrar em acordo com o líder linha dura dos islâmicos para frear a onda de violência na região. De um lado o Primeiro Ministro no exílio Akhmed Zakayev e do outro Doku Umarov, líder da resistência mais radical.

Isto demonstra, por A mais B, a situação da região, de enfraquecimento das estruturas laicas tradicionais por uma resistência armada islâmica e radical.

"Zakayev reported at length to the Berlin meeting on the content of his talks with Abdurakhmanov, specific details of which have not been disclosed. The Berlin meeting unanimously endorsed that dialogue as an opportunity to bring to an end the continuing killing of Chechens by fellow Chechens, specifically, members of the die-hard Islamic resistance headed by Doku Umarov and pro-Moscow Chechen Republic police.Expressing concern at the escalation of hostilities in recent months in Chechnya and elsewhere across the North Caucasus, the participants agreed unanimously to issue orders to the resistance units loyal to the ChRI to announce a moratorium on attacks on pro-Moscow Chechen police, and to resort to arms only in self-defense.

Since it is impossible to estimate how many of the resistance fighters currently active in Chechnya take their orders from Zakayev, rather than from Umarov, it is not clear what impact, if any, that decision will have on the ongoing fighting. Indeed, the proposed moratorium plays into Kadyrov's hands insofar as he could argue that any resistance forces that continue to target his men must be Umarov's "bandits," and that he is justified in eliminating them without mercy as he vowed to do two months ago. "

Ainda que sobre assunto completamente diverso, este trecho de uma antiga postagem minha ilustra bem como funciona a máquina de propaganda contra um suposto "terrorismo islâmico" que, por vezes, não corresponde nem ao começo da verdade:

"Acabei de encontrar o artigo que trata sobre o assunto dos três últimos parágrafos. O autor em questão é Robert Pape que analisou - através das biografias e de entrevistas com familiares dos suicidas -, entre 1982 e 1986, 38 dos 41 "terroristas" suicidas do Hizbollah.

Qualquer jornalista formado (desculpem a generalização) , diria que foram todos ataques cometidos por "militantes islâmicos" quando, na verdade, apenas 8 eram fundamentalistas islâmicos, 27 eram de grupos de Esquerda (logo, não poderiam ser encarados como militantes islâmicos) e 3 eram, vejam só, cristãos!"

Ou seja, muitas vezes o que se trata por "terrorismo islâmico" é uma deturpação completa da verdade.

Mas, voltando ao Cáucaso, é fato notar o crescimento da tensão na região, quase de forma insustentável. A receita do Kremlin de menos democracia e mais repressão vem demonstrando ser catastrófica. A imposição de Kadyrov ao povo Checheno, um notório traidor do povo, e de Yevkurov na Ingushétia, um general Russo (ainda que ele próprio Ingushe e no lugar de um carniceiro odiado) não ajudaram a conquistar a população local, muito pelo contrário, só reafirmou que o Kremlin, em consequência, Putin e Medvedev, não tem qualquer compromisso com a democracia e não respeita o direito de escolha das minorias.

Não só isto é uma verdade, como ficou irrefutavelmente comprovada com a nova política educacional russa de acabar com a autonomia das repúblicas no ensino de suas línguas, cultura e história. Agora, apenas o Russo será usado e qualquer resquício de cultura tradicional das minorias será vetado.

Se juntarmos o fracasso da guerrilha tradicional, o crescimento da solidariedade e da influência dos movimentos islâmicos pelo mundo afora, a imposição e brutalidade Russas, a supressão de qualquer direito, seja educacional, seja cultura, para as minorias e, por fim, a violência com que são recebidos os ativistas de direitos humanos no país, tornam o Cáucaso uma região prestes a explodir ou, na verdade, já explosiva e incontrolável, por maiores que sejam os esforços russos e, como se sabe, são esforços mal direcionados, desesperados e burros.

No caso específico checheno notamos, porém, uma grande autonomia por parte do governo local, comandando pelo carniceiro Kadyrov, mas esta autonomia é utilizada como passe livre para repressão, perseguições, tortura e violência extrema, tudo sob os olhos atentos e coniventes do Kremlin.

ethnicMap

No Daguestão, junto com o problema das guerrilhas islâmicas temos ainda a questão do conflito interétnico entre as dezenas de minorias que habitam a república que não é, nem de longe, homogênea.

Sob o mesmo teto convivem Ávaros (a frágil maioria), Lezgins, Kumyks, Russos, Laks, Tabasarans, Azeris e mais outras dezenas de grupos minoritários, nenhuma delas tendo uma maioria significativa ou sequer tendo 1 milhão de membros. Além disso é válido notar que estes nunca foram, ao longo da história, melhores amigos. O Daguestão é uma república extremamente artificial que agregou povos díspares sob uma mesma administração repressiva e um número impressionante de forças de segurança.

Em Kabardino-Balkária e Karatchaievo-Therkássia é visível o aumento das ações de grupos islâmicos em regiões antes relativamente calmas. A perseguição à clérigos independentes e a idéia de que todo islâmico é um fanático em potencial - ou seja, a promoção de perseguições, prisões, tortura e assassinados de "elementos perigosos" - acaba por criar, de fato, este inimigo em lugares jamais pensados antes.

Por fim, vale ainda lembrar que a recente intervenção Russa na Geórgia para "libertar" a Ossétia do Sul e Abkházia não contribuiu para acalmar os ânimos nacionalistas no Cáucaso Norte, na verdade, serviu apenas para demonstrar a hipocrisia Russa - pimenta nas repúblicas autônomas dos outros é refresco - e aumentar ainda mais a força dos ataques e o sentimento nacionalista das minorias, chegando até a ultrapassar o âmbito do Cáucaso.

A única conclusão possível é a de que as políticas Russas para o Cáucaso norte são, no mínimo, ineficazes e, mais ainda, são as grandes responsáveis ou pelo menos uma das responsáveis, pelo crescimento do terrorismo dito islâmico na região, da resistência feroz e violenta e da mudança de paradigma da resistência na região.

Post original: Trezentos

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