O que começou como um movimento de libertação
nacional da minoria Bérbere no norte do Mali e a posterior formação do
Estado de Azawad acabou como uma queda de braços entre a França, com
aval da ONU e do governo malinês, e grupos islâmicos radicais, como o
Ansar Dine e o Movimento pela Unidade e pela Jihad, da África Ocidental
(Mujao), e a Al Qaeda do Magreb, todos ligados à Al Qaeda.
Por detrás da queda de braço, interesses étnicos, religiosos e financeiros.
De
um lado tribos bérberes organizadas no MNLA (Movimento Nacional de
Libertação do Azawad) e seus ex-aliados pontuais ligados à Al Qaeda, e
do outro os interesses comerciais franceses e internacionais em uma
região rica em minerais como urânio disfarçados por preocupação
humanitária.
Os Bérberes encontram-se espalhados
por diversos países do norte da África, sendo os Curdos daquele
continente, ou seja, uma população de tamanho considerável, sem Estado, e
espalhada por diversos outros Estados onde, em muitos casos, é tratada
como inferior, tem sua língua proibida ou sua veiculação dificultada.
No
Mali, os Tuaregues, ramo local do povo Bérbere, já ensaiaram dezenas de
revoltas contra o governo central malinês com maior ou menor sucesso e
buscam a formação de um Estado que abarque todos os Tuaregues em países
vizinhos. Parece que não foi desta vez.
Fortalecidos
por armamento vindo da Líbia e com soldados treinados por Khaddafi, o
MNLA pôde pela primeira vez realmente impor perigo real ao governo
malinês.
Após um golpe de Estado no Mali, em 21
de março de 2012, cerca de 3 mil rebeldes do MNLA tomaram de assalto as
três grandes cidades de Kidal, Gao e Timbuktu – capitais regionais do
norte do Mali – em meio à completa fragilidade do governo central e
declararam sua independência.
O Mali vinha
passando há meses por um processo de deterioração de suas instituições,
seguido por um golpe de Estado e pela imposição de um governo de
transição que buscava agregar diferentes posições políticas e foi
surpreendido por mais uma revolta Bérbere, desta vez bem sucedida - ao
menos temporariamente.
A vizinha Argélia também
enfrenta dificuldades no combate tanto aos Tuaregues quanto à minoria
Cabile, também de origem bérbere, na região do Mediterrâneo. Desde 1980 e
da chamada Primavera Bérbere (que tomou nova força a partir de 2011
junto à Primavera Árabe na vizinha Tunísia) e da Primavera Negra de 2001
(quando perto de uma centena de Béberes Cabiles foram assassinados e
milhares ficaram feridos ou mutilados em ações violentas do governo
argelino contra manifestações por autonomia em um cenário de revoltas
populares locais) lutam por maior reconhecimento de sua língua e cultura
no país usando métodos pacíficos de manifestação, que muitas vezes são
reprimidas com violência.
Já em abril de 2012 o
MNLA e demais grupos islâmicos "aliados" controlavam virtualmente todo o
norte do Mali, porém tensões entre estes grupos acabaram por decretar a
derrota do MNLA e a perda das principais cidades conquistadas.
Para
tanto, o MNLA contou com o apoio de grupos islâmicos radicais, mais
interessados na formação de um califado fundamentalista do que em uma
pátria para os Bérberes que, em geral, tendem para o laicismo ou para um
islamismo moderado.
Financiados muito
provavelmente pela Arábia Saudita e por poderosos do Golfo Pérsico, os
grupos islâmicos ligados à Al Qaeda buscam se apoderar de uma região que
tradicionalmente professou e professa um islamismo moderado, de escola
jurídica Malikita e onde o Sufismo, vertente mística e não-radical,
impera.
Monumentos Sufis e tumbas de importantes líderes da corrente foram destruídos pelos radicais.
Contra
diversos prognósticos, o MNLA foi derrotado por seus aliados pontuais e
o sonho de um Azawad livre se tornou mais difícil, mas não o sonho dos
islamitas radicais de controlar a região e buscar, por fim, o controle
de todo o Mali e de usar este território como base para ataques aos
países vizinhos.
Ainda é difícil compreender
completamente o que levou o MNLA à derrota em tão pouco tempo,
especialmente quando consideramos sua maioria numérica e mesmo
superioridade em termos de equipamentos bélicos, mas o fato é que foram
virtualmente neutralizados e expulsos das principais cidades
conquistadas.
É possível apontar, ao menos em
algumas cidades, para a fragilidade do controle do MNLA que não apenas
tinha de manter controlados os islâmicos radicais como combater outros
grupos locais ligados à etnias minoritárias ou mesmo majoritárias
localmente.
Conflitos ainda acontecem em cidades
do norte, onde se enfrentam grupos islamitas que agora se opõem a um
Estado Bérbere (preferindo a conquista de todo o Mali e a fundação de um
Estado islâmico onde impere a Sharia) e o MNLA enfraquecido. O MNLA
ainda tem de enfrentar a resistência da população em cidades como Gao,
onde a maioria da população pertence a minorias africanas, como Fulas e
Songais, que contam com sua própria milícia, e Ganda Iso.
De
uma Primavera Bérbere, aos moldes da Primavera Árabe que varreu o
Oriente Médio e o norte da África em 2012 e aos moldes dos movimentos
autonomistas Cabiles, a situação passou a ser um Inverno Islâmico e um
pesadelo real para a França, antiga metrópole que conta com a presença
de 2.500 soldados no país e parece ser a única esperança do governo
central malinês e de sua população na resistência ao fundamentalismo -
mas cujo apoio não virá de graça em uma região rica em minérios.
Esta esperança, porém, sepulta os sonhos da população Bérbere do norte.
O
fato é que a ONU busca intervir na região e conta com o apoio do
exército francês e do apoio logístico do Reino Unido e da Alemanha. O
Conselho de Segurança das Nações Unidas já deu sua permissão para uma
ação francesa na região, apesar da discordância pontual dos EUA, que
preferia uma ação comandada pela CEDEAO/ECOWAS (Comunidade Econômica dos
Estados da África Ocidental), possivelmente para poder depois negociar
melhores contratos de exploração dos minérios locais sem ter de passar
pela França.
É preciso ainda recordar que
originalmente o MNLA encontrou forças e armamento para derrotar o
exército malinês no norte do país devido à intervenção dos EUA na Líbia,
que conta também com significativa minoria Bérbere (Tuaregues e outros)
que integrava, dentre outras, as forças de elite do exército de
Khaddafi.
A situação, ao menos do ponto de vista
diplomático, parece mais simples do que a situação, por exemplo, da
Líbia e da Síria, onde existia resistência a uma intervenção, no caso da
Líbia, e onde ainda existe muita confusão sobre os diversos grupos que
se degladiam, no caso da Síria, e cujo governo ainda conta com apoio da
Rússia e da China, tornando uma decisão na ONU difícil.
No
caso do Mali, nem os islâmicos radicais ligados à Al Qaeda nem os
rebeldes Bérberes contam com apoio internacional, ao menos não declarado
- ainda que seja provável o apoio de radicais e milionários sauditas
aos guerrilheiros islâmicos. Uma intervenção militar estrangeira
torna-se portanto, factível, apesar do pouco interesse que o governo
francês ou qualquer outro possa ter em ir para a linha de frente em uma
batalha que pode custar vidas e trazer perdas políticas em casa.
Apenas
os minérios e a possibilidade de contratos vantajosos - a região do
norte do Mali, Azawad, é rica em minérios - justificam uma intervenção,
assim como, em menor parte, o temor do fortalecimento de guerrilhas
islâmicas na região do Magreb, que poderia causar impactos em todo o
norte da África
O líder do Mujao, Abou Dardar,
chegou a ameaçar atacar "o coração da França" caso o país mantenha sua
cooperação militar com o Mali no combate às milícias islâmicas. Em
Paris, o nível de alerta terrorista foi elevado e a segurança de pontos
turísticos e de interesse reforçada.
Por outro
lado, lideranças no MNLA ofereceram-se para ajudar a França a derrotar
os islâmicos, mas não se sabe qual é o preço de sua ajuda e, tampouco,
se estão dispostos a abrir mão de sua independência efêmera (que durou
apenas de abril a junho de 2012) para receber ajuda externa no combate
aos islâmicos. De fato, é complicado saber se o MNLA receberá ou
oferecerá ajuda nesta questão, tudo depende de complicados arranjos
políticos.
Enquanto a situação do Mali piora,
militantes islâmicos impõem a Sharia pelo norte do país e já há casos
reportados de penas de amputação aplicadas a criminosos e penas a quem
insiste em ouvir música ou mesmo a quem utiliza toques de celular
considerados "não islâmicos".
Na vizinha Argélia,
centenas de estrangeiros foram feitos reféns por um grupo islâmico
solidário aos radicais islâmicos malineses, possivelmente o braço da Al
Qaeda no país, e vários foram mortos após a intervenção do exército do
país. Outros ataques de milícias islâmicas solidárias não podem ser
descartados.
Quando da tomada de poder por parte
dos Bérberes do MNLA e a fundação do Estado de Azawad, o temor era do
espalhamento do conflito com a adesão de grupos Bérberes de países
vizinhos.
Hoje, o temor não é mais o de uma nova
Primavera Bérbere, mas de um levante islâmico na região do Magreb que
coloque a segurança internacional em risco.
Publicado originalmente no Brasil de Fato.